No século 19, John Stuart Mill e Karl Marx, dois dos pensadores mais influentes do liberalismo e do socialismo, respectivamente, deixaram registradas suas impressões acerca do mundo oriental. Em Sobre a liberdade, o pensador inglês ressaltou que não poderia estender seus raciocínios aos indianos, pois eles possuíam um grau civilizacional inferior. Em 1853, Marx escreveu um artigo analisando o domínio britânico na Índia. Segundo o filósofo alemão, a destruição produzida pela Inglaterra faria sentido enquanto uma “revolução fundamental”, no que tange o desenvolvimento de um novo estado social. Desse modo, ciência, civilização e progresso preencheram a tríade do desenvolvimento mundial, alicerçado a partir de uma formação de modernidade eurocêntrica, independentemente da corrente política em formação.
Em sua obra clássica, O Orientalismo, Edward Said demonstrou como o discurso acerca do Oriente foi historicamente construído pelo Ocidente. De acordo com o intelectual palestino, “a exterioridade da representação é sempre regida por alguma versão do truísmo de que, se o Oriente pudesse representar a si mesmo, ele o faria; como não pode, a representação cumpre a tarefa para o Ocidente e, faute de mieux, para o pobre Oriente”. Trata-se de uma obra criticada por diversos autores, que veem em Said uma clara tentativa de transformar as potências ocidentais em responsáveis por toda a tragédia vivida pelo Oriente Médio, reduzindo o mundo a uma luta constante entre imperialistas euroamericanos e países subjugados. Tal visão de mundo percorre a maiorias dos grandes centros universitários mundo afora, reproduzindo uma análise demasiadamente vulgar, porém sedutora.
A partir das teorias estabelecidas por Said e outros intelectuais, surgiu, nas últimas décadas, um campo de estudo denominado pós-colonialismo. Os estudos pós-coloniais defendem, em geral, um distanciamento da leitura eurocêntrica de mundo e uma proposta de releitura da modernidade. Em princípio, trata-se de um projeto democratizante. Porém, no esteio desse empreendimento intelectual encontra-se um projeto de poder que, posto em prática, traz à luz uma indiferença aterrorizadora.
Alguns dos principais movimentos sociais que apoiaram o atual presidente Joe Biden nos EUA estiveram associados ao “progressismo”, representantes atuais das bandeiras hasteadas em Maio de 1968, quando uma geração propôs revolucionar a modernidade. Naquela conjuntura, filósofos como Jean-Paul Sartre e Michel Foucault apoiaram movimentos autoritários como o guevarismo e o maoísmo, apesar de já terem conhecimento das atrocidades cometidas em Cuba e na China. Trata-se, portanto, de um prolongamento da visão em que Marx parafraseia o escritor Goethe ao justificar as ações britânicas na Índia: “Essa tortura deveria nos atormentar, visto que nos traz maior prazer?” (“Sollte estes Qual uns quälen / Da sie unsre Lust vermehrt”).
Modernidade, por conseguinte, sempre estará relacionada a progresso, desenvolvimento, ciência e violência, indiferença e representações dicotômicas. Nessa última semana, Joe Biden foi responsável por uma das cenas mais trágicas vistas nos últimos anos, quando afegãos caíram de aviões ao tentarem escapar do avanço dos talibãs. Vice-presidente de Barack Obama, o vencedor do Nobel 2009, que nunca sequer governou os EUA sem participar de uma guerra, Joe Biden parece manter essa política com um discurso “progressista” no plano nacional e um gatilho pronto para ser disparado em qualquer lugar da Ásia ou da África.
Assim como ocorreu na Líbia, Síria e Iêmen, quando a dupla Obama-Biden esfacelou qualquer possibilidade de estabilidade social, Biden e Kamala Harris, a nova vice-presidente, acenam para mais quatro anos de desastres políticos na esfera internacional. Ao contrário de todo apoio legítimo à luta contra o racismo, representado pelo movimento Black Lives Matter, para os democratas as vidas afegãs não parecem ter o mesmo valor.
Victor Missiato é doutor em História, professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília e membro do Grupo de Estudos Intelectuais e Política nas Américas (Unesp/Franca).
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