Uma bebida tão antiga quanto a civilização, onipresente na descrição de porres homéricos dos banquetes greco-romanos às Sagradas Escrituras, nas quais – segundo o Google – o vinho é mencionado 140 vezes. No Livro dos Cânticos alia-se à lascívia: “Teu umbigo, essa taça redonda onde o vinho nunca falta”. O folclore popular é pródigo em frases de muito bom humor: “se beber vinho fosse pecado, Jesus teria transformado água em Fanta Uva”. Outra: “azeite, vinho e amigo, melhor se antigo”.
Em seu livro Bebo, Logo Existo, o filósofo inglês Roger Scruton rende-se à generosidade do fermentado de uvas, “um convite ao diálogo e ao perdão que há no fundo de cada taça”. Seguramente, a companhia tem forte influência nos seus encantamentos. Receber os amigos – ou a quem se ama – em torno de um bom vinho é um rito de celebração da vida. Até o circunspecto Benjamin Franklin se enche de júbilo: “o vinho é a prova constante de que Deus nos ama e deseja ver-nos felizes”. O mais idolatrado poeta português também se faz oportuno: “Boa é a vida, melhor é o vinho”.
Receber os amigos – ou a quem se ama – em torno de um bom vinho é um rito de celebração da vida
Discorrer sobre vinhos em ambientes sociais é uma postura amistosa, glamourosa e em certa medida demonstra cultura. Porém, pode-se legar a imagem de esnobe, pedante, pernóstico. Ou usando uma adjetivação mais recorrente: "enochato" no falar e inconveniente no beber. A linha divisória entre o consumo moderado e a dependência é muito tênue e sabemos que são deletérios os malefícios do exagero. Não há consenso em relação à quantidade. É plausível de uma a duas taças diárias, de 250 ml. Moderação é a palavra de ordem. O tinto seco contém antioxidantes e resveratrol, que colaboram para reduzir os níveis de LDL (o mau colesterol), elevar o HDL (o bom colesterol) e, por consequência, comprovadamente reduzir os riscos de doenças cardiovasculares. Com os amigos, faço blague que esta é a descoberta do século. O jornalista Renato Machado costuma reiterar o conselho de seu médico: “Fique perto dos vinhos que rejuvenescem e longe dos laticínios que envenenam”. E como fica a harmonização, pois queijos e vinhos representam um casamento perfeito? Mais uma vez, com moderação, esporádicas recaídas são aceitas.
A vida é muito curta para tomar maus vinhos. Pela metade do preço em relação ao Brasil, na degustação de alguns emblemáticos tintos nas bodegas de Mendoza, encontrei a justificativa da expressão “néctar dos deuses” e das veneráveis efemérides dos povos greco-romanos a Dionísio e Baco. Veio-me a lembrança da bucólica infância, quando a iniciação se fazia com a “sangria” – assim denominada nas famílias de italianos do interior de SC –, a mistura de vinho de colônia, água e açúcar. Vinho jovem, adstringente, apreciado pelos mais velhos, pois “tão puro que até tingia de vermelho os dentes”. Quando trouxe de Santiago o consagrado Don Melchor para o meu pai, depois de dois copos, perguntou o valor em reais e desconsolado me disse: “ainda prefiro os vinhos do Tio Carlo. E em preço é 20 garrafas contra uma”. Em outra ocasião, acompanhado de filhos e irmãos, todos enófilos, na visitação a uma bodega chilena, a bela morena pergunta donde somos. Eufórica, exclama: “Ah, são Brasil”. Faz sentido, pois 20% da produção da Concha Y Toro é exportada para o Brasil. Esclarece que o fundador Don Melchor legou a vinícola aos filhos, que hoje está na 4.ª geração e, no entanto, detém apenas 0,5% do capital. Vale o tour, com a ressalva do intenso merchandising. No final do ritual da degustação, a morena – nativa e com lindos traços indígenas, na educada versão dos meus acompanhantes – didaticamente verbalizava da aplicação dos cinco sentidos para bem sorver cada talagada: olfato, paladar, visão, tato. Fez-se uma providencial pausa.
Leia também: Está em falta (artigo de Flavio Quintela, publicado em 10 de maio de 2015)
– E o quinto sentido, a audição? – pergunta o paulistano ao meu lado.
Todos nós – como que embevecidos e mesmerizados com a graça e leveza daquele cerimonial –, em uníssono, bailamos nossas taças no ar em direção à taça erguida pela graciosa chilena, que após alguns segundos de silêncio proclama o gran finale:
– Y ahora, celebremos con un tintín a la salud y, a la vez, un exquisito encanto al oído.
Sim, dei-me conta de que o som daqueles sutis toques é um maravilhoso encanto aos ouvidos e sempre é prenúncio de enlevo e deleite. Mesmo quando a vida não apresenta motivos para brindar, vale a recomendação de Napoleão, em referência ao champanhe: “Nas vitórias é merecido, nas derrotas é necessário”.
Jacir J. Venturi, professor, enófilo e pecuarista.
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