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Era uma vez dois cachorros.
Lilica mora lá em casa faz 12 anos. Adquirida como Lhasa, é sempre tomada por Shitzu e seu pelo bicolor lembra o sorvete Carioca da Kibon. Sobre a propriedade, há uma disputa: acho que sou o dono dela e ela tem certeza do contrário. Nesse ponto, uma espécie de Garfield canino. Seu comportamento é igualmente antissocial na interação com humanos e outros cães, o que é confirmado pelo latido sem fim que democraticamente dispensa a todos. A valentona late, mas não passa disso.
Outra dileta figura de meu círculo é Getúlio Vargas, assim batizado porque foi atropelado quando atravessava descontraído a avenida de mesmo nome, em Curitiba. Acudido, não recebeu os primeiros socorros de forma adequada. Acolhido por meu sogro e após os devidos cuidados, voltou a pisar com as quatro patas e já está correndo de novo. Diferentemente de Lilica, não paira dúvida sobre a sua viralatice. Sua pelagem, tomando de novo sorvete por referência, é chocolate. Quanto ao temperamento, é dócil, do tipo vai com todos. Entretanto, mesmo sendo tão amistoso, late, demonstrando uma predileção por ciclistas. Sim, late, mas como Lilica, não morde.
Lilica e Getúlio confirmam o dito popular “cão que ladra não morde”, a significar que quem ameaça não concretiza. Todavia, devemos ter muita cautela diante das intimidações feitas por humanos, especialmente se forem homens ameaçando mulheres, lição essa que recebemos do noticiário, que nos traz casos de feminicidas que prenunciaram sua intenção assassina. Foi exatamente o que aconteceu com Sandra e Alan.
Sandra Mara Curti, residente em Londrina, chegou a requerer medida protetiva por conta das ameaças do ex-marido, Alan Borges, que acabou por cumpri-las, matando a ex-mulher com 22 facadas na presença dos dois filhos do casal. Levado a julgamento pelo júri, foi proferida sentença condenatória, confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que fixou a pena em 33 anos e 4 meses de reclusão.
Alan, como tantos outros que perfilham roteiro semelhante, pautou-se por uma ideia que ainda perdura: “se não for minha, não será de mais ninguém”. Nem mesmo a reprimenda alta, como a que recebeu, é suficiente para frear a fúria assassina desse tipo controlador, que prefere perder a liberdade a ver a ex-companheira seguir a vida sem a sua interferência.
Aliás, essa concepção de ser dono do destino dela tem lastro na cultura machista que prega ser a mulher propriedade do homem, sujeitando-se às vontades dele. Afinal, um macho que não dá as cartas é como um atacante que não faz gol.
Homens assim impregnados dessa masculinidade tóxica ladram e mordem. Portanto, estejamos sempre atentos ao primeiro latido para que não ocorra sua repetição e – menos ainda – a mordida que pode ser fatal.
Wagner Cinelli de Paula Freitas é desembargador do TJ-RJ e autor dos livros “Sobre ela: uma história de violência” e “Metendo a colher”.