Há, no livre mercado das ideias, um assunto que está a ganhar volume e tendência crescente: uma suposta crise de democracia. O tema é da mais alta relevância, em especial face ao agudo descrédito da política atual. Para a exata compreensão dos fatos, é fundamental traçarmos variáveis que, uma vez verificadas, legitimarão a acertada conclusão a respeito. Nesse contexto analítico, cumpre indagar: as democracias contemporâneas estão impondo alguma restrição ao imperativo de eleições periódicas? O princípio do sufrágio universal está sofrendo algum tipo de relativização, restringindo-se a participação cívica ou partidária nos pleitos eletivos? Temos, por fim, algum tipo de limitação ao exercício da crítica política àqueles que exercem mandato popular?
Sem adentrar em pormenores, pode-se dizer, regra geral, que caso houver garantia e realização de eleições periódicas, respeitado o sufrágio universal e a soberania do povo, com possibilidade de manifestação do pensamento contra agentes políticos, estaremos diante de uma democracia viva e pulsante. É claro que, a partir das entregas efetivas à população, tal regime democrático poderá ser avaliado em termos qualitativos; teremos governos melhores e outros, piores. Mas as estruturas básicas da democracia estarão presentes, possibilitando, assim, aprimoramentos tópicos e aperfeiçoamentos estruturais.
Algo não está bem. Os sintomas são evidentes. A noção do certo e do errado começa a desaparecer. Mentiras patentes são fantasiadas em verdades fúteis.
Deitadas as premissas acima, é possível afirmar que o mundo ocidental, antes de uma crise de democracia, expõe profundo déficit de liberalismo. É a liberdade das pessoas, das empresas e das organizações que está sendo alvo de ataques recorrentes; alguns sutis e silenciosos, outros violentos e frontais. Em seu excelente Liberalismand its Discontents (2022), o professor Francis Fukuyama, após sublinhar que é o liberalismo – e não a democracia – que está sob cerrado ataque nos anos recentes, destaca três razões fundamentais que justificaram o florescer das sociedades liberais dos últimos séculos: (i) o liberalismo é uma forma de contenção da violência, permitindo que grupos populacionais diversos vivam pacificamente entre si; (ii) o liberalismo protege a dignidade básica das pessoas, em especial a autonomia humana e sua capacidade de fazer escolhas; (iii) o liberalismo promove crescimento econômico e ganhos sociais daí decorrentes, protegendo a propriedade privada e a liberdade de negociar.
Em outras palavras, é o mundo livre e civilizado que está em rota de retrocesso. O declínio liberal salta aos olhos, a violência – social, verbal, virtual, pública e privada – é um traço da contemporaneidade. Ao invés de bom senso e ponderação, vemos o vicejar do radicalismo e da estupidez; o protecionismo nacionalista volta ameaçar a livre circulação de mercadorias, comprometendo a margem de crescimento e produtividade dos mercados globais; riscos geopolíticos agudos (guerras, bolhas financeiras etc.), bem como catástrofes naturais (pandemias, desastres ambientais etc), recolocam o medo como elemento de pânico e dominação das massas.
Paralelamente, as instituições que deveriam proteger a liberdade humana apresentam disfunções categóricas. As instâncias de contenção do poder perderam sincronia sistêmica, mutilando-se reciprocamente. O Legislativo parece não mais representar o povo, criando leis flagrantemente contrárias à vontade popular, como o fundo partidário e eleitoral, emendas parlamentares secretas e violação do teto de gastos. O Executivo, cambaleante e desnorteado, busca socorro no antes criticado pântano político para fins sustentação e continuidade.
Atordoado, o povo busca esperanças no valor justiça, mas vê sua Corte Constitucional, por interpretações questionáveis, libertar corruptos, instaurar procedimentos penais de ofício, criar insegurança jurídica e instabilidade decisória, fragilizando princípios fundamentais inegociáveis.
Ora, algo não está bem. Os sintomas são evidentes. A noção do certo e do errado começa a desaparecer. Mentiras patentes são fantasiadas em verdades fúteis. O poder passa a fazer tudo, transformando, gradativamente, o cidadão em nada. O fenômeno faz lembrar a advertência inapagável de Hannah Arendt (1951), ao analisar as entranhas do totalitarismo, no sentido de que “em um mundo incompreensível e em constante mudança, as massas chegaram ao ponto em que, ao mesmo tempo, acreditariam em tudo e em nada, pensariam que tudo era possível e que nada era verdade”.
Do ataque às liberdades individuais, chega-se ao golpe da liberdade política. E, com ela, também se vai aquilo que se entende por democracia. Até quando vamos negar a gravidade do que estamos vendo?
Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr., é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.