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Hoje, 5 de abril, se comemora o Dia Internacional da Consciência. Segundo Carlos Drummond de Andrade, “quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança... porque doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos”. Drummond talvez não tenha percebido que indivíduos mais esperançosos ainda escolheram dias específicos para lembrarmos causas importantes ao longo do ano.
A ONU escolheu 5 de abril como o Dia Internacional da Consciência para “apoiar a criação de relações globais amistosas baseadas em liberdades fundamentais para todas as pessoas, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. No meio dessa confusão na qual o mundo se encontra hoje, meu coração oscila entre o cinismo e a desesperança. Esse dia foi comemorado pela primeira vez em 2020, quando o mundo se preparava para enfrentar a pandemia de Covid-19.
Neste 5 de abril alguns estarão comemorando o Dia da Pizza, o Dia do Caramelo ou viajando nas estrelas, enquanto outros estarão celebrando a importância da consciência sobre uma cultura mundial pela paz.
Na tradição católica, o mesmo dia 5 de abril é dedicado a São Vicente Ferrer, um dos maiores pregadores da Igreja, falecido em 1419. Foi confessor do papa Bento XIII e possuía uma fé admirável. A vida na Europa naquela época não era fácil: fome, misticismo, miséria, ignorância, batalhas sangrentas, calamidades públicas, além da peste negra, que dizimou um terço da população.
Será que a humanidade melhorou muito entre 5 de abril de 1419 e 5 de abril de 2024? Eu acho que sim, pois descobri que no dia 5 de abril também se comemora o Dia do Caramelo, o Dia da Pizza e o Dia do Primeiro Contato. Esse último é muito importante para fãs de ficção científica e do seriado Jornada nas Estrelas. Segundo Star Trek, no dia 5 de abril de 2063, Zefram Cochrane voou em velocidades inéditas e contatou a raça vulcan, consolidando a paz na comunidade interestelar. Para quem não sabe, os vulcanos são aqueles seres extremamente racionais com orelhas pontudas.
Enquanto isso, com os pés na Terra, sabemos que neste 5 de abril de 2024 estarão em andamento cerca de 200 conflitos armados pelo mundo afora, segundo o Instituto Heidelberg de Pesquisa sobre Conflitos Internacionais Armados. O Diretor de outro Instituto, Magnus Oberg, do Upsala na Suécia (Upsala Conflict Data Program), disse em uma entrevista para a BBC: "O número de conflitos cresceu e o número de mortes relacionadas com combates aumentou 97% só em 2022, com uma alta de mais de 400% desde o ano 2000".
Guerras e conflitos em andamento incluem Rússia x Ucrânia e Israel X Hamas, mas também guerras entre gangues no Haiti, entre cartéis de drogas no México, guerras civis em Burkina Faso, Etiópia, Iêmen, Síria, Somália, Sudão, entre outras. Tudo isso favorece a lucrativa indústria bélica que movimenta mais de US$ 2 trilhões por ano.
Devemos lembrar que o Dia Internacional da Consciência não significa nada para os terroristas do Hamas ou para qualquer outro terrorista. Segundo vídeos divulgados pelos russos, os assassinos de mais de 130 pessoas no dia 23 de março em Moscou confessaram que receberam um pagamento de um milhão de rublos, equivalentes a 50 mil reais. Ou seja, cada vida assassinada vale uns R$ 350. Uma família brasileira gasta essa quantia em média a cada 15 dias no supermercado. Com certeza, o Dia da Consciência também não significa nada para esses assassinos que, depois de capturados, foram forçados pela polícia russa a comer suas próprias orelhas ao invés de irem fazer compras no supermercado com suas famílias.
Mas não precisamos ser terroristas para ignorar outros dias importantes ao longo do ano. No dia 21 de novembro, celebra-se o Dia Internacional da Filosofia, organizado pela UNESCO, e lembrado pela ínfima parcela da raça humana que valoriza esta disciplina. Ironicamente, o dia 21 de novembro é também o Dia Internacional da Televisão, a qual, apesar do conteúdo duvidoso, parece ser muito mais admirada do que a filosofia.
Temos ainda o dia internacional do basquete celebrado pela ONU no dia 21 de dezembro. O dia mundial do xadrez é lembrado a cada 20 de julho. No dia 20 de abril, a ONU celebra o dia da língua chinesa. Você sabia que o Dia Mundial da Língua Portuguesa é celebrado em 5 de maio? E que 30 de maio é o dia internacional da batata? No calendário da ONU, há dias específicos para idiomas, para causas ambientais, para animais, para prevenção de doenças, para vegetais ou para importantes causas humanitárias.
Como são escolhidas essas datas? O processo é bem sério. A ONU é formada por 193 países. O embaixador de algum país, ou um grupo de países, propõe o tema, a data e a justificativa. Por exemplo, o dia 20 de julho foi proposto como o Dia Internacional da Lua porque a Apolo XI pousou lá nesse dia. Celebra-se a “cooperação internacional para usos pacíficos do espaço”. A Assembleia-Geral da ONU então vota a proposta. Se for aceita, a data passa a integrar o calendário oficial da ONU.
O Dia Internacional para Combate à Corrupção é lembrado em 9 de dezembro quando se celebra o aniversário da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, estabelecida em 2003 e hoje apoiada por 190 países, incluindo o Brasil. No nosso caso, não parece ter adiantado nada.
Eu sei que é grande a tentação de reagir com ironia, ou mesmo com sarcasmo, a todas essas datas. Por outro lado, isso nos dá uma ideia da imensa variedade de comportamentos possíveis para a espécie humana com relação às suas preocupações, objetivos, conquistas – ou barbárie.
De modo geral, a humanidade progrediu. Fizemos mais contra a pobreza nos últimos 50 anos do que nos 500 anos anteriores. Isso não tem nada a ver com o comunismo, mas com melhorias trazidas pelo capitalismo. O desenvolvimento humano avança de modo lento, mas gradual. A medicina moderna aumentou a expectativa média de vida de 35 anos no século XV para os atuais 75 anos. Não havia saneamento, nem vacinas. Pessoas morriam de catapora, sarampo, caxumba, poliomielite etc. Não havia antibióticos nem penicilina.
Por outro lado, o Índice Global de Escravidão 2023, organizado pela ONU, revela que o número de pessoas vivendo em escravidão moderna cresceu desde 2018. Uma estatística triste mostra que o tráfico transatlântico de escravos deslocou forçosamente cerca de 13 milhões de pessoas da África entre os séculos XVI e XIX, enquanto cerca de 40 milhões de pessoas vivem hoje em “escravidão moderna”. Este relatório da ONU revelou que seis nações do G20 estão entre os países com o maior número de pessoas em situação de escravidão moderna: Índia (11 milhões), China (5.8 milhões), Rússia (1.9 milhões), Indonésia (1.8 milhões), Turquia (1.3 milhões) e os Estados Unidos (1.1 milhão). O relatório destaca o papel desempenhado pelos países do G20 no fomento do trabalho forçado nas cadeias de abastecimento globais. Isso acontece devido à demanda por produtos eletrônicos baratos, roupas, painéis solares e têxteis em geral. No caso dos EUA, as modalidades de tráfico sexual e trabalhadores agrícolas ilegais acontecem com mais frequência.
Neste 5 de abril alguns estarão comemorando o Dia da Pizza, o Dia do Caramelo ou viajando nas estrelas, enquanto outros estarão celebrando a importância da consciência sobre uma cultura mundial pela paz. Ao mesmo tempo, em qualquer dia do ano, serão 27 milhões de vítimas de tráfico humano, 110 milhões de pessoas deslocadas por guerras ou desastres naturais, 22 milhões de mulheres em casamentos forçados, entre outras situações lastimáveis pelo planeta.
Talvez seja melhor interpretar cada um desses dias especiais como uma referência para o que ainda precisamos fazer. E começar a mudar as coisas a partir de você, quem sabe? Afinal, como disse Gandhi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”.
Jonas Rabinovitch é arquiteto urbanista com 30 anos de experiência como Conselheiro Sênior da ONU em Nova York nas áreas de inovação em gestão pública, governo digital e desenvolvimento urbano.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos