| Foto: Reprodução

Há 322 anos, em 21 de novembro de 1694, nascia François-Marie Arouet, autor que ficaria conhecido mais tarde como Voltaire, nome inventado por ele próprio. Voltaire foi um dos mais prolíficos escritores franceses. Sua obra toca os mais diversos assuntos, de arte e direito à física e metafísica, valendo-se de quase todas as formas literárias então disponíveis: poesia, teatro, tratado, ensaio, panfleto, dicionário, conto.

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No entanto, o autor nascido em Paris ficaria conhecido pelo amplo público dos séculos seguintes como o defensor da liberdade e o combatente contra os abusos do poder e do fanatismo religioso, para os seus simpatizantes; e o autor subversivo, irreligioso e ateu, para os seus detratores. Para aqueles que gostam de ler e estudar a obra de um autor, contudo, os grandes rótulos são de pouca valia. Alguns são mais acertados que outros, mas todos são perniciosos por favorecerem a dispensa de leitura das obras e de questões que não se resolvem facilmente.

Voltaire era, sim, um autor anticlerical, e se dedicou a muitas causas contra o poder da Igreja e os abusos do fanatismo. Ele escreveu muito contra a superstição e o que era então chamado de entusiasmo, compreendido como a convicção de sentir-se imbuído de Deus ou de tarefas atribuídas por Ele. Denunciou esses abusos na mistura perigosa entre poder e religião, entre governo e Igreja, entre convicções religiosas e o Poder Judiciário. Todavia, Voltaire não era ateu, nem antirreligioso. Por toda a sua vida e nos mais diversos escritos Voltaire afirmou a existência de Deus, que sempre lhe pareceu ser a crença mais razoável, e parte de sua produção filosófica pode ser compreendida a partir de questionamentos de caráter religioso.

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Outro combate de Voltaire menos conhecido, aquele contra o ateísmo, confirma a posição singular do autor. Após os anos 1760, quando o materialismo ateu de autores como o Barão d’Holbach proliferava entre os escritores e filósofos franceses, Voltaire dedica sua pena a mostrar os abusos intelectuais (não políticos ou jurídicos) dos ateus. Para Voltaire, esses autores cometiam o mesmo pecado intelectual dos religiosos: davam como certo algo para o qual restavam ainda muitas dúvidas, tomavam como resposta definitiva algo para o qual a razão (naquele momento, ao menos) poderia fornecer apenas indícios, enfim, eram todos presunçosos e confiantes demais.

Em época de “pós-verdade”, talvez tenhamos de ouvir ainda as lições do velho filósofo com seu riso sarcástico

Voltaire acreditava na existência de Deus, a boa e velha causa primeira dos filósofos, mas não tinha a fé das religiões reveladas nem o tipo de convicção dos materialistas ateus. Sua defesa da tolerância se deve, em boa medida, não a dogmas sobre a natureza humana e outras coisas, mas à ignorância de verdades que superam o homem, e à necessidade da manutenção da dúvida e da contínua busca de compreensão; é isso que nos ensina o texto do autor já septuagenário, o Filósofo ignorante.

Voltaire afirmava que sua defesa da existência de Deus era uma crença, pois pensava fundá-la em argumentos, em estudo histórico e na reflexão moral e política. Ele teria indícios para sustentá-la e afirmava, ainda, que ela era uma probabilidade, não uma certeza, como a maioria de nossas crenças. Entretanto, ele fazia questão de não a confundir com a fé, que é certeza sem prova, que lhe aparecia como aniquilação da razão, como obediência ou, perdoado o oxímoro, como crença no incrível.

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Voltaire tomou partido em muitas causas e casos, como aquele da injusta condenação de um pai acusado de ter matado o próprio filho por diferenças de credo religioso (“caso Calas”), ou naquela aberração gerada pela mistura entre religião e Poder Judiciário que condenou um jovem à morte, com punhos e língua cortados em praça pública, por muito menos que chutes em símbolos religiosos (o caso do cavaleiro de La Barre).

A defesa da separação do Estado e da religião, de acordo com o quadro dentro do qual se apresentam habitualmente as ideias do autor, está fundada não apenas em sua observação social e política dos absurdos e da violência a que pode levar a mistura entre estes dois âmbitos, mas também em uma reflexão filosófica sobre a natureza da crença e a defesa do provável, daquilo que se vale de argumentos, caracterizado sobretudo como aquilo que pode ser posto em público e partilhado em arena comum. Isso deve ser distinguido, segundo o autor, do que é convicção íntima, que é certeza sem razão, que é acúmulo de pré-julgamentos, e que por isso mesmo não é partilhável. Esta última não tem como atuar no âmbito político ou público senão pela imposição violenta de seus dogmas. O que se pretende discutível pode ter seus dogmas, mas não doutrina ninguém, por assim dizer. O que tem potencial doutrinador é, ao contrário, aquilo que se retira da discussão, as convicções que querem se defender da exposição e do espaço comum. O pensamento anticlerical do autor, sua defesa da liberdade, da tolerância e do Estado laico ultrapassam a mera conclamação bem-intencionada ao mútuo respeito; ela está fundada em uma longa reflexão que permite ao autor rejeitar e se opor a religiosos e aos ateus de seu tempo, pois a convicção íntima não poderia se traduzir em provas, indícios e argumentos a serem partilhados no âmbito comum da vida política.

Em época de “pós-verdade”, talvez tenhamos de ouvir ainda as lições do velho filósofo com seu riso sarcástico, ou talvez já não façam mais nenhum sentido seus alertas e sua luta. Suas obras, no entanto, não deixarão nunca de nos dizer com ironia sobre o perigo de a arena pública ser tomada pela certeza que não pode ser partilhada, pela fé em detrimento de argumentos, pelas convicções sem provas, pelo pensamento religioso contaminando a política e o direito.

Rodrigo Brandão é professor de História da Filosofia Moderna e Ética e Filosofia Política na Universidade Federal do Paraná.