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Voto obrigatório: janelas de oportunidade e condições para a democracia

Eleições 2020 foram transferidas para novembro (Foto: Elza Fiúza/Fotos Públicas)

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José Saramago, no romance Ensaio sobre a Lucidez, expressa aos seus leitores uma questão tão intrigante, quanto curiosa: os moradores de certa localidade, quando chamados a votar, optam, em sua maioria, pelo voto em branco, levando as autoridades a um estado de perplexidade, sobretudo em razão da serenidade com que alcançaram essa decisão. Como resultado subsequente, são os moradores abandonados por essas mesmas autoridades, devendo gerir seu destino público com suas próprias mãos.

A possibilidade de que uma eleição seja anulada por motivo de votos inválidos, como é o caso dos votos em branco, é questão que, ocasionalmente, surge à tona quando se tem um pleito eleitoral no qual devem ser feitas escolhas difíceis. Inicialmente, cumpre observar que, no Brasil, nulidade do resultado eleitoral nessas circunstâncias não há, pois a Constituição é clara ao afirmar, por exemplo, no caso do Presidente da República, que este será eleito se obtiver a maioria dos votos válidos, o que exclui aqueles nulos e em branco.

Entre nós, portanto, tem-se a impossibilidade de que uma eleição seja anulada caso a maioria dos eleitores decida por não votar em nenhum dos candidatos do pleito. Mas afinal, o que levaria um eleitor a anular o seu instrumento de exercício de parcela do poder político?  Indiferença? Insatisfação? Aceitação? Qualquer resposta acende luz para outra questão importante, que é a compulsoriedade do voto. Afinal, a insatisfação ou indiferença popular poderia resultar em uma quantidade menor de eleitores votantes, não poderia? E uma quantidade menor de eleitores votantes reduziria o custo do processo eleitoral, não é verdade? Além disso, é certo que se teria, como resultado das urnas, uma demanda legítima, daqueles efetivamente interessados na condução de assuntos de interesse público. Será?

A diferença entre voto facultativo e voto obrigatório remete a um binômio clássico no universo jurídico e moral em sentido amplo, que diz respeito às noções de direito e de dever. No caso do voto, direito enquanto potestade subjetiva a ser exercida quando for de entendimento, e dever enquanto compartilhamento de responsabilidades na gestão de questões de interesse público. Questões de interesse público que, quando mandatórias, são ilustradas, por exemplo, pelo dever constitucional de pagar tributos, pela solidariedade social (a previdência pública brasileira é um exemplo), pela prestação de serviço militar obrigatório. Dever de voto obrigatório significa exercício (que não pressupõe aceitação) de parcela de responsabilidade que compete a cada um no governo, tanto no que se refere àqueles que foram escolhidos para atuarem como representantes eleitos, quanto, em maior extensão, na atividade política subsequentemente desenvolvida por esses representantes.

Durante décadas após a redemocratização de 1988, sucederam-se governantes distintos, cada um conduzindo os assuntos de interesse público à sua maneira. Apesar desse fato, os presidentes FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro possuem algo em comum. Afinal, embora apresentem diferenças desde diferentes perspectivas, possuem como ponto comum de identidade a noção de estabilidade e de legitimidade que se mostram subjacentes à democracia brasileira. O que quer e/ou de que precisam um país e o seu povo, circunstancialmente, fica demonstrado pelo perfil dos mandatários que chegam às instâncias representativas de poder.

Nesse cenário, a compulsoriedade do voto surge como uma hipótese, uma possibilidade, uma questão para reflexão, ainda que se tenha como objetivo identificar na carne, no nervo, que motivos fazem emergir essa discussão em qualquer lugar do mundo, e porque, concorde-se, a realidade brasileira não comporta flexibilização quanto a esse comando constitucional.

De qualquer forma, a democracia é feita de chamados periódicos, compulsórios ou não, para a manifestação da comunidade política sobre determinados assuntos de natureza pública. Nesse sentido, surge absolutamente interessante, por exemplo, a iniciativa da Justiça Eleitoral brasileira em realizar consulta pública para recebimento de sugestões sobre questões relacionadas ao pleito eleitoral de 2020, no contexto da pandemia da Covid-19. A medida se apresenta como um plausível canal de aproximação entre o cidadão e instâncias oficiais de tomada de decisão. Quando as instituições trabalham dialogicamente com a sociedade civil, dentro de seu universo de competências, operando uma leitura plural e procedimental de preceitos normativos constitucionais em matéria de implementação da cidadania, como é o caso, tem-se, na prática, um exemplo daquilo que o jurista alemão Peter Häberle chamou de sociedade aberta de intérpretes da Constituição. Em outras palavras, trata-se de compreender que todos nós integramos a comunidade política que se constitui sob a Constituição de 88, sendo os mecanismos institucionais de exercício da soberania popular – metabolizada, aqui, a crítica de Saramago –  autênticas janelas de oportunidade para a construção da sociedade em que almejamos viver.

Ana Lucia Pretto Pereira, pós-doutora em Processo Constitucional pelo PNPD/Capes, é professora na Universidade Católica de Brasília, no Mackenzie e no UniBrasil. Advogada, é também autora de livros e artigos na área de direito público.

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