Defender posse ilimitada de armas em nome da "liberdade" do cidadão é como censurar a proibição de beber antes de dirigir
A tragédia ocorrida na Escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, reacendeu no Brasil o debate sobre desarmamento e proibição de venda de armas. Os armamentistas defendem que todos devem poder portar quantas armas quiserem porque o governo não garante a segurança de ninguém. Outros entendem que cercear a posse de arma é uma tentativa de tolher as liberdades individuais.
Está no artigo 144 da Constituição que "a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos". Então, a responsabilidade não é só do governo. Aposto que os que apoiam a ideia de que o Estado como um gigantesco e todo-poderoso pai deveria ser capaz de prover segurança absoluta a todos em todos os momentos, são os mesmos pregoeiros ferozes do Estado-mínimo. Fogem da sua responsabilidade, constitucionalmente determinada, jogando-a nas costas dos outros. Nenhum governo do mundo oferece uma alternativa como essa porque ela é simplesmente impossível. Se funcionasse, haveria lugares na Terra isentos de crime. E não há.
Com todo o respeito aos arautos das "liberdades individuais", o argumento não se sustenta. Mesmo que camuflado no surrado e fácil mas sempre eficiente recurso de atacar os políticos. Em sociedades civilizadas, a liberdade de um termina onde começa a do outro. Defender posse ilimitada de armas em nome da "liberdade" do cidadão é como censurar a proibição de beber antes de dirigir. Parte do falso princípio de que isso só diz respeito ao possuidor da arma, e a ninguém mais. Ignora a imensa quantidade de armas que circulam na ilegalidade e que foram subtraídas de "cidadãos de bem" que, carentes das habilidades dos mocinhos do cinema, foram subjugados pelo bandido ao invés de subjugá-lo. Assim como o motorista embriagado põe em risco a vida de terceiros, também o faz quem compra arma legalmente, mas não evita que ela caia em mãos assassinas. Comprar arma é um ato de liberdade? Então beber antes de dirigir também.
Comparar o Brasil com os Estados Unidos é bobagem. Maçãs não são bananas. Embora possua a maior economia do mundo, os Estados Unidos são o país mais violento dentre os desenvolvidos. Comparados com os europeus, não dão nem pra saída. Para números, assista a Tiros em Columbine, de Michael Moore. Já o Brasil está em nítida desvantagem. E o número de armas em circulação tem, sim, muito a ver com isso.
O que não vemos é os defensores das armas rebaterem com argumentos sólidos algumas verdades que insistem em não se esconder atrás de seu palavreado. Toda arma ilegal nasceu legal. Chegou ao crime ou porque foi arrebatada do cidadão de bem, ou através da corrupção (policial, de comerciantes de armamentos, ou outras) etc.
Quanto menor for o número de armas em circulação, menor será a facilidade de acesso a elas pelos marginais. Não é intrigante que um desequilibrado homicida não precisasse mais do que ir até a esquina de sua casa para obter, com uma desculpa esfarrapada, as armas com as quais praticaria o crime? Armas essas, aliás, que anos atrás eram legais até serem roubadas de seus proprietários originais. E não vale argumentar que a responsabilidade por fiscalizar é do governo, que não o faz. Não adianta sonhar com um governo supereficiente em um país jovem e carente como o nosso. Melhor é, enquanto construímos o país que terá esse governo, lidar com a realidade e facilitar o trabalho dele.
Se fosse proibido vender armas legalmente, seria imensamente mais fácil fiscalizar. E muito mais difícil obter a arma para o crime. Trata-se de uma simples e mecânica relação de causa e efeito. Colocar a culpa de tudo no governo e nos políticos é a parte mais fácil. Assumir a responsabilidade que temos todos, e cada um, bem... aí já não tanto.
Marcelo Jugend, advogado, é secretário municipal de Segurança de São José dos Pinhais.