Os produtores da série de TV lançada pela Paramount em 2018, Yellowstone, no gênero neo-western esperavam ter sucesso. A série tem como principal ator o indefectível Kevin Costner, no papel de dono do rancho Yellowstone, da família Dutton, assim como bons atores da nova geração, Cole Hauser, no papel de seu fiel cowboy e mão direita, Rip, e a excelente atriz inglesa Kelly Reilly no papel de Beth Dutton, sua filha e namorada de Rip.
Com um elenco de primeira linha como esse, um roteiro muito bem feito, e filmada na esplendorosa paisagem do estado de Montana, a série tinha tudo para dar certo. Mesmo assim foi surpresa o fato de ter alcançado a maior audiência nacional depois do futebol, deixando concorrentes como Succession, do canal HBO, a mais celebradas pela critica esquerdista, no chinelo. Succession, que supostamente narra uma história inspirada na disputa pela posse da rede de TV a cabo Fox, pela família de Rupert Murdoch, tem dez vez menos audiência em seus momentos de pico do que Yellowstone.
Yellowstone é mesmo uma série envolvente. Até agora com cinco temporadas, conta a história de John Dutton (Costner) seus filhos Beth (Reilly), Jamie (Wes Bentley), Kayce (Luke Grimes), e o cowboy Rip (Hauser) defendendo a posse do rancho Yellowstone que foi conquistado pelo patriarca do clã Dutton em 1886. O sucesso estrondoso e as menções à origem do rancho inspiraram o criador da série Taylor Sheridan a criar mais dois “spin-offs” ou séries derivadas da original.
Pode o conservadorismo sobreviver sem o reconhecimento de uma moral transcendente?
A série 1883 lançada em 2022, é um trabalho primoroso. Conta a jornada empreendida por um grupo de peregrinos, saindo do Leste para buscar no Oeste terras gratuitas e independência financeira. Com o magnífico Sam Elliott que faz o papel do chefe de expedição Shea Brennan, os cantores country Tim McGraw e Faith Hill, que são James e Margaret Dutton, o corajoso casal que saiu do Tennessee para conquistar o Oeste, e a encantadora jovem Isabel May, sua filha, Elsa Dutton, que descobre a vida durante a dura jornada para alcançar o Oeste e suas terras gratuitas, o conjunto é impecável. Com uma história emocionante e atores de primeira linha o sucesso desse “conto de origem” foi grande.
Com igual sucesso, Sheridan lançou 1923 esse ano, estrelando Harrison Ford e Helen Mirren (Jacob e Cara Dutton) que dispensam adjetivos elogiosos. Confesso ser fã da franquia, e não perco um capítulo de 1923, veiculado semanalmente pela Paramount. Não vou estragar o prazer de quem ainda não viu a série me detendo em detalhes do enredo, mas quero comentar sobre o pendor político da série. Críticos americanos acusam a série de ser “conservadora”, para eles uma característica negativa. Será que é mesmo?
John Dutton é Stalin de chapéu de cowboy. Se a América tivesse sido populada apenas pelos Dutton seria a Rússia e não os EUA.
Para o conservador que acredita em governo pequeno, posse de armas, em uma sociedade onde o homem é homem, mulher é mulher, em indivíduos livres vivendo num mundo onde o destino de cada um é esculpido em pedra dura com muito esforço, a série é uma dádiva. John Dutton (Costner) no tempo presente sente que tem a missão de preservar o rancho conquistado por seus antepassados e luta contra o “grande capital” que quer transformar o estado em um polo turístico e o “grande governo” que se coaduna com os interesses das grandes empresas e antagoniza diretamente o típico “filho” de Montana. Os inimigos são os turistas e empresários esquerdistas vindos da Costa Leste americana. Nada mais conservador do que esses temas.
John, o cowboy Rip e até Beth Dutton, a filha, implacáveis com a presa como os ursos das montanhas geladas, incorporam o espírito indomável, livre e obstinado que construiu a grandeza da América. Não é à toa que a série se tornou a mais popular da TV americana nos últimos anos – a mais assistida em 2021 e 2022. A maioria da população americana ainda cultiva esse ideal de liberdade e de trabalho duro. O “self-made-man” – homem que se faz por si mesmo, lutando contra as circunstâncias desfavoráveis, ainda reina supremo como o herói no centro do imaginário social para a maioria do país.
Quando não se tem fé, como o chefe do clã Dutton, só existe um compromisso, o de manter o seu reino pessoal. Nada mais importa.
Sheridan insiste que o show não é “conservador,” porque fica no meio em vários temas que geralmente se polarizam à esquerda ou à direita. Na questão indígena, por exemplo, a série é capaz de demonstrar as injustiças feitas contra os índios, a pobreza das reservas, exagera na narrativa dos abusos cometidos no início do século XX (1923), de uma forma exagerada e cruel com os religiosos, como é de se esperar, mas não deixa de explorar a violência e a crueldade dos próprios índios em sua guerra contra os colonos e uns contra os outros.
Não dá para colocar um rótulo azul (democratas) ou vermelho (republicanos) na série, diz Sheridan. E ele tem razão. A guerra política atual por não tratar com profundidade de tema algum ignora as tensões intrínsecas das questões que agora são usadas como armas dos dois lados. A intelligentsia esquerdista não sabe o que fazer quando um show explora questões humanas de maneira menos maniqueísta.
Mas a principal ressalva que faço em relação à cosmovisão da série, é também um alerta a nós brasileiros que ainda estamos aprendendo a ser conservadores. Taylor Sheridan omite o elemento mais importante na formação desse espírito indômito da América: a fé. A religião e até a fé no seu sentido mais pessoal não existe no roteiro de Sheridan. E nisso ele peca contra a história verdadeira do país, e contra a própria alma “superiormente livre” do americano.
Essa alma “cultural,” idealizada ao longo de quase três séculos, como sabemos, não surge do nada, não surge por acaso no evolucionismo darwiniano nem é um subproduto do secularismo iluminista. Nas palavras do preâmbulo da Constituição Americana esse povo fundou a união dos estados para assegurar a todos “tranquilidade doméstica, possibilitar uma defesa comum, promover o bem-estar geral e as bençãos da liberdade para nós e nossa posteridade”. Não é a Constituição do lobo solitário que faz suas próprias leis e defende apenas o seu feudo. É a alma de quem sabe separar o que é o mero capricho voluntarioso do senso de chamado ou destino, e, portanto, tem seu comportamento guiado por uma moral superior. E é apenas a fé que constrói uma moral desse tipo. A série de Sheridan falha aí.
Nem no spin-off que narra a origem da saga dos Dutton no século XIX, a fé está presente. Num momento histórico quando não existia um imaginário social que não fosse alicerçado em alguma expressão da fé cristã, Sheridan constrói suas histórias e seus personagens completamente alheios a qualquer tipo de fé, a não ser o shamanismo imanente dos indígenas. Sheridan varreu a fé dos pequenos povoados por onde passa a caravana, onde não se vê igrejas, varreu da música, das conversas, e da história da família Dutton. James Dutton, o primeiro patriarca, nascido em meados do século XIX, é um homem secular que parece ser nosso contemporâneo. A esposa e a filha também não têm dimensão espiritual ou moral de nenhum tipo. A mãe, quando percebe que a filha adolescente começara a ser ativa sexualmente a aconselha a “se proteger e se divertir” como se fosse uma mãe pós-moderna na Nova York de hoje.
Em 1883, os únicos cristãos são os imigrantes alemães menonitas, cuja caravana o personagem de Sam Elliott guia. A fé dos menonitas está em segundo plano, e é motivo de chacota para os outros participantes da jornada para o Oeste. No primeiro plano está a sua falta total de preparo para a vida, a aversão as armas, e sua incapacidade de entender o mundo no qual estão entrando, tudo produto da religião sectarista que cultivam. Nem preciso dizer que todos morrem antes de chegar a seu destino com a exceção do líder do grupo.
Em 1923, o único tema religioso é a captura e cativeiro de meninos indígenas por um grupo de religiosos que se comportam como líderes de um campo de concentração nazista. Na série passada nos tempos atuais, a filha de John (Costner), Beth Dutton (Reilly), sequestra um padre para fazer o seu casamento, porque o marido tinha um sonho de “se casar do jeito certo”. Apesar da beleza da cena, nem Beth ou o noivo, Rip (Hauser) demonstram contrição ou reconhecimento de que estão diante de Deus. A cerimônia não tem significado além do compromisso que eles têm um com o outro por causa do “amor”, eterno enquanto dura. Num mundo secular como o construído por Sheridan, qualquer cerimônia religiosa se realizada nunca vai passar disso: um ritual que afirma a nossa solidão cósmica.
A crítica americana compara de John Dutton com o mafioso Tony Soprano da antiga série da HBO. Sheridan explicou a moral de Dutton para a revista The Atlantic dessa maneira: “Quando você tem um reino, e você é o rei, existe moral? Qualquer um que tenta roubar seu reino e te remover de seu reinado vai substituir a sua moralidade pela deles. Então moralidade deve ser um fator a ser considerado? O que torna você um rei? No final das contas esse é o tema principal da série”. Sheridan tem razão. Quando não se tem fé, como o chefe do clã Dutton, só existe um compromisso, o de manter o seu reino pessoal. Nada mais importa.
A pergunta para aqueles que se interessam pela questão política por trás dessa declaração é: pode o conservadorismo sobreviver sem o reconhecimento de uma moral transcendente? A pergunta parece demandar uma resposta sofisticada, mas não. Para responder, é só o leitor se perguntar se gostaria de trabalhar na fazenda dos Dutton. O reino desse cowboy supostamente conservador vai ser sempre um lugar perigoso para se viver porque a única lei que o interessa é a sua própria. John Dutton é Stalin de chapéu de cowboy. Se a América tivesse sido populada apenas pelos Dutton seria a Rússia e não os EUA.
Braulia Ribeiro é mestre em Linguística, mestre em Divindade pela Yale University e doutoranda em História e Teologia Política na University of St. Andrews (Escócia).
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