Em Hitler e os Alemães, o filósofo Eric Voegelin menciona o caso de um prestigiado acadêmico alemão que, recusando as explicações anteriores sobre o Führer, sobretudo as de teor psicológico, pretendeu oferecer uma descrição objetiva e documental, baseada em “fatos úteis”. Imbuído daquela afetação de objetividade, o sujeito saiu-se com pérolas do tipo: “Hitler tinha olhos profundamente azuis, radiantes” e “Tinha um nariz feio, mas também uma fronte alta, orelhas bem formadas, uma compleição de garota e nenhum traço de calvície”, e ainda “Deixava cair os braços casualmente, mas não os colocava nos bolsos da calça”.
Voegelin cita o caso para ilustrar um estado de corrupção cultural que, responsável por haver conduzido os nazistas ao poder, de algum modo sobrevivera à sua queda. Sem que ele próprio tivesse alguma vez demonstrado qualquer simpatia pelo nacional-socialismo, aquele acadêmico sucumbira, no entanto, à pretensa “aura” de Hitler, apegando-se a minúcias insignificantes no ato mesmo de oferecer uma descrição “científica”.
Nosso país foi dessensibilizado por sua elite artística e intelectual para o drama moral da existência
Lembrei do que vai acima ao notar, espantado, o tratamento que a grande imprensa nacional tem dispensado à soltura de José Dirceu. “Após ser solto, Dirceu come pinhão e tira fotos com amigos”, lemos em um jornal de grande circulação nacional. “Dirceu pede pizza em sua primeira noite livre”, é a manchete de outro. E, por meio de um terceiro, ficamos sabendo que “parecia mais interessado em aproveitar as delícias do café, com queijo de Minas, pães, bolos, frutas e sucos, do que em comentar o seu processo”. Ao que parece, também nossos jornais estão mais interessados em ouvi-lo falar sobre isso.
O tom das matérias ilustra aquilo que demonstraram Mario Vieira de Mello em Desenvolvimento e Cultura: O problema do estetismo no Brasil e, mais recentemente, Martim Vasques da Cunha em A Poeira da Glória: nosso país foi dessensibilizado por sua elite artística e intelectual para o drama moral da existência. Com raras exceções, nossos literatos, artistas e dramaturgos têm ignorado o problema do mal. Nunca tivemos um Dante, um Shakespeare, um Dostoievski, um Bernanos. Não me refiro aqui, bem entendido, à qualidade literária, mas à atenção dada ao tema da moralidade.
Nossos homens de cultura têm o hábito de enfatizar a mistura, a confusão, o lusco-fusco. A percepção de uma diferença nítida entre mal e bem foi desacreditada, tida por arcaica. Fazem-nos ver o “lado humano” de criminosos, ao mesmo tempo que nos induzem a desconfiar da bondade e do heroísmo. “Ninguém é tão bom assim. Esse sujeito deve dormir com a cunhada” – ensinam nossas letras e artes. Descuidados de Mateus 5,37 (“Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna”), aceitamos a língua dupla da malícia disfarçada de “complexidade do real”.
A estetização na cultura conduz àquilo que o poeta T. S. Eliot chamou de “imaginação diabólica” – a sedução pelo mal. Daí que, desprovidos de discernimento moral, muitos de nossos formadores de opinião acabem se deixando seduzir pela “aura” de bandidos como Zé Dirceu e o traficante Nem (certa vez descrito por uma jornalista como “educado, alto, moreno e musculoso”). E, lamentavelmente, como sabemos desde Hannah Arendt, essa banalização do mal não pode deixar de propagá-lo.