O referendo realizado ontem, mais do que aprovar o livre comércio de armas e respectivas munições, se transformou em um plebiscito com um recado aos governantes. Na essência, a sociedade declarou que o combate à violência requer medidas além do controle do comércio e do uso de armas de fogo de natureza qualificada, deixadas de lado nos últimos anos dentro do quadro geral de baixa efetividade da administração pública.
No evento, estiveram presentes razões de natureza histórica: a colonização do nosso imenso território foi feita por desbravadores de armas na mão. Para adentrar o sertão, esses formadores não esperaram, nem podiam, a presença da autoridade constituída. A História brasileira, ainda, está repleta de episódios em que o povo acorreu com armas improvisadas, desde a Batalha de Guararapes, que levou à saída definitiva dos invasores holandeses do Nordeste; até a resistência popular às incursões de piratas e aventureiros que invadiam nossas costas inclusive no episódio do navio inglês Cormoran, em Paranaguá.
Dois acontecimentos se destacam nessa saga, sendo o primeiro a reação popular no Rio contra a tropa portuguesa que tentou prender o então príncipe dom Pedro, com isso selando a Independência em 1822; até a luta dos patriotas na Bahia em 1823, que juntaram forças para vencer o exército comandado pelo general Madeira. Em ambos os casos não havia armas oficiais, sendo a defesa sustentada pelos recursos à mão dos moradores, animados pelo sentimento de defesa de sua terra e liberdade.
Agora, ao se alinharem pelo "sim", certos intelectuais exibiram uma miopia típica que o comum do povo associou à linha mais à esquerda do grupamento político no poder. Essa polarização engrossou a frente contra a proibição, alinhada contra o avanço do Estado sobre os direitos da cidadania. Porém, como observou a imprensa internacional, larga parte do processo decorreu de rejeição às ineficiências do governo, repetindo a reprovação dos franceses ao projeto de Constituição européia.
Ao pedirem um "não" político no referendo, esses segmentos médios reclamaram demandas por correções de fundo na gestão do país, desde o aspecto imediatamente em jogo da segurança pública até o travamento da economia sob a tutela de políticas radicais de ajuste fiscal cuja expressão acabada, o reaparecimento da febre aftosa, desorganiza o setor pecuário brasileiro.
Reprovada a proibição, o estatuto do desarmamento em si perde legitimidade; votado que foi no início de 2003, fase em que o Congresso mais sofria as distorções do mensalão de suborno a parlamentares. Fica patente a necessidade de reformar essa lei desconhecedora das diferenças da Federação eliminando-se artigos de constitucionalidade já argüida nos tribunais, ou pontos em aberto tal a situação dos habitantes da zona rural de modo a adequá-la ao padrão democrático. De fato uma sociedade livre só deve consentir em leis legítimas e realistas, dignas de obediência pelo povo que as aceitou.
Deixe sua opinião