Não vou me reportar ao assunto crucial do momento, enredo de falcatruas e falsidades, em que os responsáveis pelos destinos da pátria se degradam no mais indecoroso capítulo da História. O roteiro não vai passar desse crescendo de desaforos e acusações a imprimir um clichê cada vez mais deplorável, nos homens que escolhemos para os poderes da nação.
Mesmo porque já deparei, encastoada nesta página, a opinião ilustre do Cony a divisar no presidente Lula, o lidimo criador da situação a que chegamos, conclusão há tempo anotada na minha agenda. Pelo seu despreparo, falta de autoridade, apatia administrativa, intolerância às reuniões e incapacidade de divergir, Sua excelência, popular e carismático é o retirante do agreste que abriu a porteira para o estouro da boiada.
Mas, mudando de assunto, como se diz nas rodas informais, deixo essa novela para a mídia onde os políticos e adeptos do ramo mais e melhor escrevem os fatos que sucedem.
E passo a falar de um domingo, 12 de novembro de 1936, quando fui ao Hipódromo do Guabirotuba, assistir à 24.ª reunião do ano, importante evento da elite curitibana, a atrair o naco mais distinto da sociedade.
A predileção de Manoel Ribas pelo esporte das rédeas aglutinava uma legião de aficionados do turfe, levando nossa pecuária a altas projeções nacionais, e aos eventos do Jockey, um colorido especial com a freqüência feminina e a Banda da Polícia com seus acordes triunfais.
O governador comparecia acompanhado de D. Anita, às 15h30, na Lincoln Zephir B12 do Palácio, chamando a atenção geral, todos aptos a reverenciá-lo na Tribuna de Honra, onde puxavam o que não deviam, enquanto a primeira-dama permanecia no carro dividindo atenções com os áulicos de plantão.
O programa que se distribuía informava: "No intervalo do 4.º para o 5.º páreo, será sorteado um mimoso brinde entre as distintas senhoras e gentis senhoritas presentes. São expressamente proibidas as apostas particulares. Entradas: Archibancada com direito a ensilhamento 5$000. Archibancada 3$000. Menores 2$000. Grátis para senhoras e senhoritas."
"Atenção! Senhores Turfistas!. A Alfaiataria Brasil confecciona roupas sob medida que agrada ao mais exigente cavalheiro. Cidadãos de Curitiba! Não esqueçam que a Chapelaria Central é a casa dos artigos de primeira qualidade. Rua 15 de novembro n º 291. Senhores Advogados! A livraria Mundial já tem a venda o novíssimo Código de Processo Civil e Comercial do Brasil. Decreto Lei nº 1.608. Um belo volume de 230 paginas por 10$000. Seja previdente! Faça seus seguros na Atalaia, "a nossa companhia". Casa Nickel. Pneus e Câmaras de ar Continental. Acumuladores Varta, rua Pedro Ivo 348."
O programa incluía 7 páreos, reunindo 4 ou 6 mestiços de 1/2 sangue a 7/8, montados pelos jóqueis: Constante Bini, Aristides Santos, Avelino Piovesan, Amadeu Costa, Sebastião Bezerra e o aprendiz Luís Rigoni, futuro maior bridão do Brasil, o homem do violino, com direito ao tango "da-lhe Rigoni."
Cursava o 2.º ano de Medicina, e meu domingo começava pela manhã na rua 15, onde engraxava os sapatos. Uma mania. Eram muitas as charutarias e engraxatarias sempre lotadas. O preço era 300 réis, mais a gorjeta obrigatória para o capricho. Os engraxates conheciam a clientela e aos cochichos iam informando ao companheiro: julareco, freguês que dava 400; Julucentão, 500; e Julete, 1.000 réis. Depois a missa e o footing, nas saídas da Catedral ou Bom Jesus. À tarde, estudava e à noite, ia ao Cine Avenida. Naquele Domingo, eu tinha no dia seguinte a prova de Física, com o Prof. Coriolano Silveira da Mota. Sabia toda a matéria e em virtude dos 9 e 8 tirados em exames anteriores precisava de apenas 3 para completar os 20 que aprovavam.
Daí que fui ao Jockey. Lá, encontrei o meu amigo Emanuel Coelho, irmão do Vasco e do Valentim, que de turfe muito sabia. Pedi-lhe um palpite para o betting, aposta tríplice de 10$000 em que se jogava no vencedor dos três últimos páreos. Ele me deu Camponesa no 5.º, Monte Alegre no 6.º e Smirna no 7.º. Camponesa do Manoel Vianna Júnior, ganhou o 5.º, iniciando minha chance. Monte Alegre faturou o seguinte, criando esperanças. Passei então a ser procurado por vários apostadores interessados na compra do meu betting, usando de sábios provérbios: "Mais vale um pássaro na mão do que dois voando; não troque o certo pelo duvidoso; olhe que a Smirna pode mancar." Na época havia uma marcha, cujo refrão repetia: "Não me importo que a mula manque, o que eu quero é rosetar". Verso que os portugueses traduziam: "Pouco se me dá que a zêmula claudique o que me apraz é acicatá-la".
O último páreo era decisivo e principal. Em 1.700 metros com a Smirna, do Mário Gomes César, correndo com a carga máxima de 60 kg. enquanto o cavalo Famoso, do Heitor Valente, seu maior rival com a mínima de 48 kg. No "counter" mais confiei na minha escolha ao vê-la, altiva e alegre, evoluindo num galope ágil e solto a me confidenciar: "Fique frio que esta é minha".
E se assim disse, assim fez, em primeiro de ponta a ponta, passando pelas arquibancadas airosa, bela e imbatível, a cruzar o disco com três corpos de vantagem e colocar no meu bolso 270 mil réis.
Se aqui ainda estivesse, Smirna, daria-lhe um beijo no focinho, pela alegria que deu a um estudante liso e que nem conhecia. Como não está um saudoso abraço, 66 anos depois, muito obrigado de coração.
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