Vai ocorrer a apropriação inconstitucional do patrimônio e das receitas previdenciárias, pela União, aprovada, na Câmara dos Deputados, a Medida Provisória n.º 258/05, que instituiu a Receita Federal do Brasil, se for finalmente convertida em lei.
A mídia acertou logo de cara. Batizou-a de Super-Receita, quando surgiu a notícia de sua gestação. Nasceu tão poderosa que foi afanando patrimônio alheio. No caso, o patrimônio previdenciário, constituído ao longo dos anos pelas contribuições dos trabalhadores e das empresas do país, para atender, no futuro, às pensões dos dependentes, proventos de aposentadoria e os vários direitos dos trabalhadores rurais e urbanos.
Desde as Constituições de 1934 (art. 121, § 1.º, "h"), de 1946 (art. 157, XVI), de 1967 (art. 158, XVI), de 1969 (art. 158, XVI) deu-se tratamento distinto à questão previdenciária, no sentido de amparar o trabalhador em relação à doença, velhice, invalidez e morte. Essa tradição de tratamento específico à previdência culminou na Constituição atual de 1988, ao tratar a previdência sob um conceito mais amplo de seguridade social, abrangendo também a saúde e assistência social.
Para tornar auto-suficiente a seguridade social, aí incluída a previdência social, a atual Constituição deu-lhe autonomia administrativa ao atribuir-lhe o caráter democrático e descentralizado de administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do governo nos órgãos colegiados (art. 194, parágrafo único, VII); orçamentária, ao estabelecer orçamento específico para a seguridade social, (art. 165, § 5.º, III); e financeira, pois ela "será financiada por toda sociedade de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios" (art. 195, caput).
A Ordem dos Advogados do Brasil, pelo seu presidente nacional, Roberto Busato, dirigiu recentemente Manifestação Pública aos presidentes da Câmara e do Senado, demonstrando a inconstitucionalidade dessa MP, pois afronta o seu caráter autárquico constitucional, por instrumento normativo inidôneo para tanto a medida provisória. Matéria tratada na MP, finanças públicas e "normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta" (conforme respectivamente art. 163, I e art. 165 § 9.º, II, da Constituição), estão submetidos à reserva de lei complementar. Portanto, trata-se de questão insuscetível de disciplinamento por lei ordinária, ou sua forma precária e bastarda, a medida provisória.
Além disso, é evidente que regime jurídico que vem desde a Constituição de 1934, mantido no essencial, não pode ser alterado sob a invocação de urgência. Somente uma tecnocracia nutrida pela proteína jurídica dos luxuriantes gramados da Esplanada dos Ministérios pode encontrar urgência para alteração de uma matéria de natureza constitucional, que tem sido mantida, no fundamental, por mais de 70 anos.
É de se reconhecer a influência do meio ambiente. Realmente, a incolumidade do patrimônio público tem sido estuprada, como demonstram as várias CPIs em curso no Congresso. E há também uma criminalidade legalizada em curso, feita pela edição de normas jurídicas, via medidas provisórias, atacando o bolso dos cidadãos e os caixas das empresas.
Agora, realmente, o governo Lulábia da Silva extrapolou. Essa medida provisória 258, ao atribuir a titularidade da contribuição previdenciária à União, torna-a suscetível ao desvio de 20% da sua arrecadação por força da Desvinculação das Receitas da União. Com previsão da arrecadação anual de cerca de 120 bilhões de reais, o patrimônio previdenciário, que protege os trabalhadores deste país no infortúnio da doença, da incapacidade laboral, da velhice, em seguro social moderno, sofrerá severa perda.
Vão ser desviados, no mínimo, 24 bilhões para compor o superávit primário, recursos amealhados para pagar os credores da dívida pública, como determina o FMI. Desfalca-se, inconstitucionalmente, o patrimônio previdenciário, já deficitário, para favorecer as instituições financeiras e os rentistas, em desfavor dos trabalhadores do país e dos aposentados e pensionistas da previdência social. Isso permite julgar a quem serve esse governo que está aí, renegador das promessas e do mandato que obteve do povo. O patrimônio previdenciário não é propriedade do governo, e sim do trabalhador que o constituiu e é o destinatário de sua aplicação.
Osíris de Azevedo Lopes Filho é advogado, professor de Direito na Universidade de Brasília (UnB) e Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-secretário da Receita Federal.
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