Em suas Confissões, Santo Agostinho recorda ter testemunhado uma criança “cheia de inveja, que ainda não falava e já olhava, pálida, de rosto colérico” para o bebê que a sua mãe alimentava no peito. Diante de tão poderosa cena, ele questionou a inocência da criança que “não tolera junto de si, na mesma fonte fecunda do leite, o companheiro destituído de auxílio e só com esse alimento para sustentar a vida”. Ao qualificar tal inveja como um defeito, Agostinho observou que esse tipo de má inclinação era tolerado pela crença de que desapareceria “com o andar dos anos”. E que tal expectativa era a única razão para a indulgência.
Lembro-me do estupor ao ler esse trecho. O assombro instantâneo explica-se: sentia-me um tanto desconfortável ao perceber em certos atos de crianças e adolescentes a manifestação altiva de tipos distintos de má inclinação. Em casos que acompanhei de perto, de fato, “o andar dos anos” permitiu que as boas mentes superassem os defeitos. Por outro lado, fui testemunha do contrário, da maldade que se desenvolvia e era praticada.
Desde que li as Confissões, há uns 20 anos, atos de violência cometidos por adolescentes aumentaram em quantidade e brutalidade. Como o noticiado na semana passada: uma garota de 14 anos foi esfaqueada e torturada por outras quatro adolescentes de 13 a 16 anos, durante quatro horas, na cidade de Trindade, em Goiás.
Ou deixamos de ser lenientes diante do mal ou seremos seus aliados
O relato da vítima é estarrecedor: “Elas começaram a me bater, me amarraram, me mostraram onde eu iria ser enterrada. Nisso, me deram uma facada e me colocaram na cova”. Ela só pôde contar a história porque conseguiu fugir e pedir socorro. As agressoras foram presas.
O motivo da brutalidade deixa a história ainda mais sinistra. Foi por ciúmes do ex-namorado de uma das torturadoras que estaria ajudando a vítima a organizar a sua festa de 15 anos que as amigas decidiram reproduzir em 2016 a violência daquele “estado de natureza” descrito pelo filósofo inglês Thomas Hobbes no seu célebre livro Leviatã.
A crueldade das jovens poderia ter sido mais uma nas estatísticas se não fosse filmada por uma delas e publicada nas redes sociais. Não bastava a bestialidade, era preciso registrá-la e divulgá-la. Abjeto.
Tão perturbador quanto a tentativa da “morte violenta”, aquela que Hobbes definiu como “o supremo mal da natureza” e que Leo Strauss analisou vividamente em A Filosofia Política de Hobbes, foi a declaração de uma das torturadoras ao repórter do site G1: “No nosso pensamento, íamos bater nela, ela ia morrer e nós íamos enterrar ela. Só que aí não deu certo, porque nós somos frouxas, sabe. Nós não damos conta de começar o serviço e terminar”. O problema, portanto, não foi a selvageria cometida, mas o fracasso em concluir o ato. Repulsivo.
Sem expressar qualquer arrependimento, a jovem manifesta o mal descrito por Santo Agostinho e é o protótipo de quem, segundo Hobbes, realiza “o desejo irracional de poder” por meio da morte violenta. Mas como explicar essa barbárie? Como essas meninas foram capazes?
Certamente, a tolerância em relação à má inclinação de crianças, jovens e adultos, algo que deixou de ser exclusividade de certas famílias e passou a ser um hábito social, tem um papel crucial na preservação dos defeitos individuais que eventualmente transbordam em violência. Não só aquela paixão não desapareceu como cresceu a ponto de ser tentada. Se a criança é o pai do homem, como resumiu o poeta inglês William Wordsworth, tolerar o mal quando jovem é alimentar o mal que se torna adulto.
Casos de selvageria como o praticado em Goiás não são, é verdade, o padrão de comportamento da sociedade brasileira. Mas a nossa indulgência em relação ao mau comportamento tem contribuído decisivamente para a degradação da sociedade. Tudo pode, sim, piorar, se nos omitirmos. A escolha é, definitivamente, ética: ou deixamos de ser lenientes diante do mal ou seremos seus aliados. A responsabilidade é nossa.
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