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Bruno Garschagen

A escrivaninha, os vivos, os mortos e os que estão por nascer

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(Foto: Reprodução)

Escrevo este artigo um dia antes da posse presidencial do “diabo encarnado” e alaranjado Donald Trump. Não sei, portanto, o que disse o novo presidente dos Estados Unidos no seu discurso inaugural de mandato. Nem mesmo aquilo que ele não disse, mas que a imprensa certamente afirmou que ele disse e reagiu com os adjetivos e impropérios de costume. Pervertendo a máxima do Millôr Fernandes, a grande imprensa só é oposição quando os republicanos estão no poder; de resto, é armazém de secos e molhados.

Liberto, por isso, de tratar de assuntos menores como a política americana, dedico a minha atenção a um tema verdadeiramente importante, fascinante e crucial para o destino da humanidade de hoje e sempre: escrivaninha.

Sou fascinado por escrivaninha. Por sua beleza, e pelo seu uso por intelectuais e escritores que admiro. Fascínio duplo; digo mais, inseparável. Sim, confesso: quanto mais bela a escrivaninha, maior a admiração que já sinto.

A história do escritor é a história de sua escrivaninha

Exemplos? A escrivaninha de Thomas Carlyle é linda em sua simplicidade; dá vontade de sentar e escrever. Autor de Sartor Resartus, livro que, como nenhum outro, segundo Jorge Luis Borges, expôs o idealismo “com maior convicção, desespero e força satírica”, Carlyle era admirado pela intelectualidade vitoriana, influenciou grandes nomes das letras e foi celebrado em vida por nomes como Charles Dickens e Anthony Trollope; mais tarde, por Winston Churchill e T.S. Eliot. A lista é longa e imponente.

Quando vi a foto da escrivaninha de Dickens, esplendorosa e funcional, lembrei do impacto que seus livros tiveram na minha formação como leitor. Nessa escrivaninha, ele escreveu Grandes Esperanças. Não tenho dúvida de que, ao expor em sua literatura a situação dos miseráveis na Inglaterra para as elites política e econômica, Dickens fez muito mais por eles do que Karl Marx jamais poderia ter feito.

Trollope, autor de livros como The way we live now, um de meus prediletos, escreveu suas histórias numa escrivaninha elegante e frugal, frugalidade que rivaliza com a exuberância de sua obra repleta de riqueza, nobreza e aristocracia. Se você é fã de Downton Abbey como eu, saiba que a existência da série seria improvável sem os romances de Trollope, grande influência de Julian Fellowes. Quem acompanha o trabalho de Fellowes certamente assistiu à série Doctor Thorne, baseada num livro de Trollope e lançada no ano passado em quatro episódios.

Mais exemplos? Imponente e maciça, estilo George III, a escrivaninha vitoriana utilizada por Winston Churchill em sua residência em Londres foi companheira e testemunha de alguns dos principais acontecimentos da primeira metade do século 20. Escritor prolífico, refinado e merecidamente premiado com o Nobel de Literatura em 1953, Churchill também é autor de um livro precioso por sua capacidade de análise psicológica: Grandes homens do meu tempo.

T.S. Eliot trabalhava numa escrivaninha sóbria cujo tamanho permitia ao autor de Homens Ocos ter tudo à mão sem grande esforço. Assim podia concentrar o seu empenho no trabalho intelectual de escritor e editor. Uma mesa séria e clássica – tal qual o seu usuário.

Se ninguém jamais disse, digo eu: a história do escritor é a história de sua escrivaninha. Toda escrivaninha é, de fato, uma extensão do escritor. Semana passada despedi-me da minha, que me acompanhou por quatro anos. Foi onde escrevi o meu livro Pare de acreditar no governo e todos os artigos para esta Gazeta do Povo – exceto este.

Passei a ter como amiga e espectadora uma nova escrivaninha, que de nova nada tinha posto que antiga e recém-restaurada. Uma bela peça de madeira escura que me transporta para o universo das minhas influências intelectuais e que me serve como elo entre o passado e o presente baseado naquela viva associação formulada por Edmund Burke entre os vivos, os mortos e os que estão por nascer.

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