| Foto: Toshifumi Kitamura/AFP

Pense bem: alguma vez na história a mentira já esteve ausente da política?

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Um dos desdobramentos mais interessantes da eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos foi expor a ideologia e a hipocrisia, em distintas e profundas dimensões, de uma numerosa parcela de jornalistas, acadêmicos e intelectuais. Essa fauna tem reagido ao resultado como se Trump tivesse lançado uma novidade. Ou inaugurado uma nova forma de mentir.

Nesse segundo caso, o exemplo mais notável foi um texto publicado em setembro pela The Economist (“Art of the lie”). A revista tentava enquadrar o então candidato do Partido Republicano como expoente da “política da pós-verdade”. Não, não se trata da política baseada exclusivamente em inverdades. A “política da pós-verdade” é a confiança que depositamos em afirmações feitas por políticos que não são fundamentadas nos fatos, mas que são, apesar disso, percebidas como verdadeiras.

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A imprensa incorreu no mesmo vício que acusou Trump de haver cometido

Se no passado “o propósito da mentira política era criar uma falsa visão do mundo”, agora “as mentiras de homens como Trump” pretendem reforçar preconceitos e despertar certos sentimentos na população, mesmo que para isso seja necessário ignorar a realidade.

Eu, se fosse editor da Economist, perguntaria ao autor do texto: afinal, qual é a novidade? Nenhum candidato antes de Trump mentiu ou usou a linguagem com o objetivo de instrumentalizar os sentimentos da sociedade, para o bem e para o mal? E pela campanha que fez, incluindo os ataques contra o seu adversário, Hillary Clinton não seria protagonista da “política da pós-verdade”? Lula e Dilma Rousseff, e seus apoiadores recém-presos como Sérgio Cabral Filho e Anthony Garotinho, não fizeram o mesmo?

O artigo da revista é ruim porque impreciso nas definições que utiliza. Era de se esperar que o texto explicasse o título, “A arte da mentira”. Mas o que se lê não é exatamente a explicação de um fenômeno político a partir de uma nova dimensão no uso da mentira na política, o que poderia fazer sentido. O que a revista faz é confundir e embaralhar as definições. Porque, se existe uma “política da pós-verdade”, existe uma verdade, que é o contrário da mentira.

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No próprio texto, como já mencionei, o elemento distintivo da “política da pós-verdade” é colocar a realidade num plano secundário, não falsificá-la nem contestá-la. Se assim for, temos dois aspectos reveladores: a verdade continua a existir, mesmo que posta em segundo plano; e a verdade não é contestada nem falsificada.

Sob essa perspectiva, Trump seria um candidato que não contesta nem falsifica a verdade, mas a coloca em segundo plano com o propósito de seduzir os eleitores. Além disso, segundo a Economist, ele também mente. Sim, claro, um político consegue, em diferentes ocasiões, mentir, dizer a verdade e preterir a verdade (sem falsificá-la ou contestá-la). O texto, porém, força a mão para tentar demonstrar o impossível: que um político consegue fazê-lo ao mesmo tempo. Nem Lula nem Dilma conseguiriam tal proeza.

Há uma concordância na sociedade, segundo a Economist, de que o exercício da política deveria ser fundamentado na realidade e na verdade. Estamos de acordo. O problema é que a grande imprensa internacional exaltou Hillary e atacou Trump com base em falsificações, não nas evidências. Isso é tão preocupante e terrível quanto o uso da mentira como instrumento político.

Ao atacar sistematicamente o hoje presidente eleito dos Estados Unidos, a imprensa incorreu no mesmo vício que acusou Trump de haver cometido (com a valiosa ajuda dele mesmo). Se existe, de fato, uma “política da pós-verdade”, também subsiste uma “imprensa da pós-verdade”, aquela que é capaz de mentir e de falsificar a realidade para eleger um candidato. Deu no que deu.