Há uma estreita relação entre o relativismo moral e o relativismo cultural? Theodore Dalrymple, pseudônimo do psiquiatra inglês Anthony Daniels, acredita que sim. Em seu novo livro, Qualquer coisa serve, Dalrymple analisa exemplos concretos da relativização dos valores morais e suas implicações culturais, especialmente na Inglaterra, mas que em parte aplica-se ao Brasil.
O que isso, no entanto, significa na vida cotidiana? Que se relativizarmos determinados valores o resultado será a construção de valores degradados que, por exemplo, consideram aceitáveis “a imposição de um sofrimento terrível sobre as pessoas” e que justificam mortes de indivíduos em virtude de seus atributos, preferências, modos de vida ou enfermidades. A questão que se impõe define o ambiente ao nosso redor: em que tipo de sociedade desejamos viver?
A questão que se impõe define o ambiente ao nosso redor: em que tipo de sociedade desejamos viver?
Os relativismos podem neutralizar, desfigurar ou destruir uma parte substantiva da experiência histórica de uma sociedade a ponto de ser impossível, no futuro, identificar e preservar as virtudes e os aspectos positivos (e eliminar os elementos negativos) que foram testados ao longo de um dado período de tempo. O prisma dispersivo moral e ético que mencionei na coluna da semana passada é, pois, o resultado da aceitação de que cada homem constrói e manifesta uma verdade individual desconectada da tradição da qual ele é fruto. Sem esse vínculo (e o reconhecimento dessa conexão) será impossível a formação de um senso comum e de um bem comum alicerçados em valores que contribuam para uma vida boa.
Uso a expressão “vida boa” no sentido dado pelo professor John Kekes no livro The Morality of Pluralism: uma vida que seja “tanto pessoalmente satisfatória como moralmente meritória”. Mas “vida boa”, para Kekes, não significa “vida moral”, observa o professor português José Tomaz Castello Branco. Isso porque “o primeiro (conceito) é mais amplo que o segundo na medida em que compreende elementos morais e elementos não morais”, como afirma em Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução.
Por isso, garantir a existência dessa “vida boa” exige aceitar “tipos de valores radicalmente diferentes (...), e que muitos desses valores são conflitantes e não podem ser realizados em conjunto”. O pluralismo definido por Kekes parece derrubar a defesa dos valores morais e de uma verdade que não sejam relativizados, mas o que ele faz é descrever a realidade que se manifesta na vida concreta: os valores são muitos, distintos, discordantes e não podem ser todos eles conciliados de maneira coesa.
Essa discordância entre os distintos valores morais (bem comum, amor, amizade) e não morais (beleza, carreira, aventura) podem produzir profundas mudanças morais, especialmente quando os fundamentos da moralidade sofrem ataques sistemáticos e entram em processo de desintegração. O equívoco mais comum é enfrentar esse problema radicalizando uma visão monista segundo a qual só existe um único sistema razoável de valores (morais e não morais) que funciona para todas as pessoas e ao qual todos devemos ser submetidos.
Esta visão traz consigo a ideia perigosa de que “só um valor incondicional poderia ter autoridade moral, racional e independente do contexto”. Mas como lidar com todas essas questões difíceis? Seria o pluralismo proposto por John Kekes uma proposta adequada para combater os relativismos e a degradação cultural? Voltaremos ao tema na próxima semana.
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