Um tema que me fascina é como as ideias de dever e de responsabilidade são instrumentos poderosos para forjar pessoas e comunidades virtuosas. E não há elite natural que não esteja alicerçada nessas duas dimensões.
Duas séries que vi recentemente no (Deus abençoe o) Netflix apresentam o sentido de dever e de responsabilidade em abordagens distintas, mas com semelhante vigor. Em The Crown, a jovem Elizabeth descobre precocemente que a vida de rainha exige enormes sacrifícios em nome do dever de servir à nação. É de arrepiar a cena em que a sua avó, a rainha Mary, vestida de luto, curva-se diante da neta que virou rainha ao suceder o falecido pai, o rei George VI.
Os diálogos da rainha Elizabeth II com a mãe, com a avó, com o marido Philip, duque de Edimburgo, com o tio, duque de Windsor, e com Winston Churchill são uma aula acerca do doloroso processo de assunção à mais alta hierarquia da família real britânica. É, mais do que tudo, pedagógico.
Experimentei o fim de uma cultura em que era senso comum as pessoas assumirem os seus deveres
Vemos na primeira temporada da série como ela enfrentou os dilemas e desafios não sem sofrimentos, hesitações, dúvidas e resiliência. Se a criança é o pai do homem, como definiu o poeta inglês William Wordsworth, a jovem Elizabeth é a mãe da mulher que se tornou a rainha com o mais longevo e próspero reinado da história do Reino Unido (64 anos até agora).
A segunda série a lidar com os sentidos de dever e de responsabilidade é Luke Cage. Personagem ficcional da Marvel Comics, Cage, de forma distinta à rainha Elizabeth II, percebe que assumir o compromisso de combater o crime é um imperativo moral diante da degradação das pessoas e do lugar onde mora, o Harlem. O herói preto que mora num bairro de maioria preta e que se vê pressionado a lidar com a criminalidade do lugar.
Preso injustamente e espancado na prisão, Luke Cage foi salvo por um médico que o submeteu a uma experiência que lhe deu superpoderes. Uma vez fora da prisão e foragido da Justiça, Cage aprendeu com o amigo, conselheiro e dono de uma conhecida barbearia no Harlem, o ex-presidiário Henry “Pop” Hunter, que o homem às vezes é chamado a assumir determinadas obrigações perante os outros e sua comunidade. Mas foi somente depois de uma tragédia que ele percebeu que os novos atributos que via como maldição ganharam significado. Cage não foi ao dever, mas o dever foi a ele – e Cage assumiu a tarefa.
Tão distantes na forma, no conteúdo e na existência real, Luke Cage e a rainha Elizabeth II são dois personagens simbólicos oriundos de duas culturas (americana e inglesa) em que o senso comum ainda reconhece a soberania da responsabilidade sobre os direitos. Se essa relação for algum dia invertida, os reflexos serão dramáticos – como acontece no Brasil.
A propósito, puxando pela memória, não lembro de qualquer série brasileira recente, ou até mesmo de um filme, em que o sentido de dever e de responsabilidade fosse o elemento estrutural do pensamento e da ação dos protagonistas em relação às pessoas, à comunidade e ao lugar onde vivem. É um problema cultural e atual nosso? De fato, considerando que hoje só se fala em direitos, não em deveres. E, se só reconhecemos a existência de direitos, como poderia haver profissionais capazes de produzir séries e filmes em que esses temas fossem apresentados ou discutidos de maneira adulta?
Sem idealizar o passado, nas dimensões deste artigo, nem sempre o Brasil foi o que é hoje. Na minha infância e parte da adolescência, experimentei o fim de uma cultura em que era senso comum as pessoas assumirem os seus deveres e os pais assumirem a responsabilidade de educar os filhos – para ficar em dois exemplos.
É verdade que nem tudo é degradação e que o país melhorou em muitos aspectos, mas deixamos que virtudes fundamentais à formação de uma boa sociedade fossem esquecidas por falta de uso ou rejeitadas por serem “velhas”. Há de, neste momento, empreender um esforço de restauração do melhor que foi esquecido e lapidar o que de melhor foi mantido. Eis o nosso dever, eis a nossa responsabilidade.