É 1929. No horizonte, veem-se espessas colunas de fumaça negra. Donde raios saem as horríveis colunas? O lugar é o interior de São Paulo. As fogueiras têm um cheiro peculiar: de café forte. Sim, leitor, o Brasil está queimando 7 milhões de sacas de café estocadas. Especulação? Sim! O odor vai do Oiapoque ao Chuí.
O que terá havido para tão terríveis cenas na peça A Moratória? Quem sabe afirma que o mundo está quebrando. Um homenzinho de pince-nez afirma categórico: “a economia ocidental entrou pelo ralo em Wall Street”. Outro sujeito passa célere e brada: “protejam-se da verdadeira razão da fumaça!” É o crack da Bolsa de Valores dos Estados Unidos, que vai para as cucuias. Eis aí o porquê das contorções do capitalismo. O tsunami de fortunas que somem no ar como pó está no início.
Os coronéis do café estão atônitos. Lá fora, o café queima. Em uma fazenda no interior de São Paulo, o cafeicultor Joaquim ainda nada sabe da dimensão da tragédia. Ele se apega aos valores do passado. No mundo ocidental, surgem multidões de mendigos. Em grandes países como os Estados Unidos, o proletariado rural vaga pelo país em busca de terra e trabalho. A obra Ratos e Homens, de John Steinbeck, capta esse quadro. A crise é ampla e exige mudanças. O fazendeiro Joaquim vê a família pisada, tantas as humilhações. Todos estão na pior.
O panorama socioeconômico é brutal. Quem tem uma posse (ou pose), como Joaquim, já as perdeu. Sua filha Lucília, ciente de que a vida jamais será o que foi, agarra-se à máquina de costura e trabalha para seus fregueses e para a tia Elvira, que lhe paga com verduras e leite de sua fazenda. É tamanha a confusão que todos os componentes da família se deslocam para as mais rudes e cruéis atitudes. O medo se espraia. A crise só faz crescer o caos. O status da família vai para o vinagre. O filho Marcelo, um renitente desocupado, se vê pobre. Como nunca trabalhou na fazenda, busca um reles emprego na cidade. Constrói uma “fábrica” de minhocas.
Os personagens, flagrados em suas fraquezas e vícios, estão entrando e saindo do presente para o passado e vice-versa
E quem disse que pessoas do campo não se acertam em cidades do interior? Joaquim, o chefe, está bastante debilitado, pois se vê na miséria e não sabe fazer outra coisa a não ser cuidar da fazenda e de uns pés de jabuticabas, com as quais demonstra sua sede de sobrevivência. A ruína começa pela declaração do governo de que, devido à crise, todos terão o direito de entrar no programa da moratória; mais prazo para pagar as dívidas. Como isso não ocorre, toda a família fica estarrecida quando a propriedade é levada a leilão e arrematada. Lá no horizonte, vê-se um vulto tentando apagar as chamas do café torrando; será Joaquim? Lucília praticamente assume a posição do pai, na medida em que percebe a sua alienação. Ele se recusa a aceitar esse novo tempo que vem pra ficar. Isso ocorre entre os solavancos políticos da República Velha e a era Getúlio Vargas.
A interdependência dos personagens torna-se aflitiva. O noivo de Lucília, o advogado Olímpio, tenta salvar a fazenda. Só o fazendeiro Joaquim se entrega ao desespero, fato marcado pelo seu apego aos pés de jabuticaba que plantou. Tudo isso que está indo para o papel acontece por toda a região. A lavoura cafeeira detonada provoca o êxodo de milhares de trabalhadores rurais. Todavia, por sorte, é hora de subirem ao palco os novos cuidadores das lavouras: os imigrantes, especialmente italianos.
A mulher de Joaquim, Helena, que nunca trabalhara, torna-se serviçal dos outros. Para atenuar sua dor, passa a rezar e se devotar à religião. É sua fuga. Ainda não se disse, mas tudo que se descreve e se narra aqui está sendo representado em um palco de teatro. Nele se desenrola o drama dessa gente toda. O palco é dividido em duas peças. A mobília desses compartimentos é eloquente sinal das mudanças de poder. Num, o da direita, veem-se os móveis e a decoração de um ambiente que lembra a rica fazenda de outrora; no da esquerda, há as marcas e objetos de adorno de uma sala pobre. Ou seja, representa a pobre casa que os cafeeiros alugaram na cidadezinha depois de despejados. A peça transcorre entre esses dois ambientes: há um arco entre os aposentos. Os personagens, flagrados em suas fraquezas e vícios, estão entrando e saindo do presente para o passado e vice-versa; do sítio para a cidade. Joaquim procura consolo ao visitar a fazenda já desocupada. Vai para rever as jabuticabas e regá-las. Acaricia as frutas como se fosse a pele de um felino doméstico. Ele errou muito. Vendeu a reserva de café que guardara por uma ninharia.
Marcelo é uma espécie de playboy rural, incapaz de sobreviver na cidade. É uma alma penada a vagar por esses espaços rascunhados pela vida baixa. Os prazos se esgotam. O triste crepúsculo desse tipo de gente, a burguesia rural, é se rebaixar até além da linha do horizonte. Assim é a mobilidade social no campo. Em Nova York, a alta burguesia capitalista, arruinada da noite para o dia, se joga do alto dos prédios de Manhattan. Aqui, no interior paulista, o que se vê é lamentável. Um parente do ex-dono tenta se enforcar em um pé de café. No palco em que a peça de Jorge Andrade é montada, os parentes e a família de Joaquim choram pelo poder perdido. O governo de Getúlio não cumpre o que prometera: emprestar dinheiro aos devedores.
“Cadê o dinheiro que estava aqui?”, murmura Lucília, que trabalha na máquina de costura, acelerada, para recuperar o brilho perdido. A vida se consome avidamente na tentativa dela de deixar seu pai colocar de joelhos os seus inimigos. Embalde! Como se vê, é toda uma estrutura de poder que alcança os cumes da opressão para os já oprimidos.
Veja, leitor, como os fatos econômicos e sociais são tão nocivos e deletérios e, ao mesmo tempo, necessários. Exatamente para que os personagens da peça ocupem novos lugares na societas, a sociedade que está se desenhando debaixo de seus narizes. Há inúmeras possibilidades de julgar o patriarca Joaquim, um fraco; sua mulher Helena, omissa (e fraca), se despe das vestes da classe média-alta e se refugia nas missas e ladainhas da religião. O filho Marcelo, um estroina, mal-acostumado com o conforto, que fará agora? Lucília é realista e vai continuar pedalando a velha máquina de costura. As efígies de um Coração de Jesus e de Nossa Senhora vão continuar a observá-los da parede até ao fim. Olímpio é um personagem neutro, como noivo de Lucília, mas ajuda bastante, ao tentar evitar o leilão da fazenda. Casam-se. Despejados para sempre, após o arremate da fazenda em hasta pública, toda a família terá de conviver com novas pessoas, nem sempre do mesmo nível. Entre alhos e bugalhos, idas e vindas, todos se recompõem para assumir nova identidade. As fogueiras de café se apagam. Joaquim passa por perto de um empregado que lhe pergunta, à queima-roupa: “E agora, coronel, para onde ir?” “No posto de gasolina, há uma vaga de frentista.” “Que tal? Jabuticabas?” “Ou os grãos do café verde? ” “Enfim, é o fim.” Lucília está costurando um colar de jabuticabas para o pai.
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