Quando leio Vidas Secas, de Graciliano Ramos, me surpreendo com a paisagem e com a “secura” dos personagens. Meu contato com essa obra foi muito singular. Como professor de curso pré-vestibular, quero achar uma maneira de motivar os alunos para a obra em questão. Pergunto quantos a leram. Silêncio absoluto. Dá para ouvir o voo rasante de uma nutrida mosca varejeira. É preciso fazer algo para quebrar a pasmaceira da classe.
Eis o que me vem à cabeça: resolvo apelar para o humor e ironia. Digo-lhes que, para ler esse livro, é preciso tomar algumas providências drásticas. É tamanha a luminosidade do ambiente rural nordestino que sugiro lerem o texto com óculos escuros. Deverão também ler se resguardando da impiedosa soalheira, sob um nutrido guarda-sol. Um enorme sanduíche de buchada de bode pode ser essencial e, finalmente, não pode faltar um cantil de água fresca. Esqueço que, particularmente, é bom proteger os lábios do sol abrasador. Os meus ficam gretados como o casco-calcanhar de Sinhá Vitória.
Detalhe: alguns alunos “manés”, como são chamados pelos gozadores, vêm para ouvir minha aula com todos os apetrechos arrolados. Alguns trazem até umas tiras de carne de sol, que vão mascando pelo caminho. Eis a indumentária: chapéu de couro, gibão, perneiras de couro cru, além da peixeira longa de dois gumes. Forma-se um circo, somente contido pela intervenção do porteiro e do diretor.
Ironias e humor à parte, vamos descarnar o livro como o autor faz com os personagens, uma família de sertanejos nordestinos: o pai, Fabiano; Sinhá Vitória, a mãe; o menino mais novo; o menino mais velho; e cachorrinha Baleia. Tudo neste livro é esquálido.
Ler esta obra é refazer uma jornada dolorosa pela vida do sertanejo, destroçada pelo meio ambiente hostil, selvagem, brutalizando os seres humanos e os animais. Inclua-se aqui o papagaio, também degustado sem maiores aflições.
Ler Vidas Secas é refazer uma jornada dolorosa pela vida do sertanejo
Graciliano Ramos escreveu os capítulos de Vidas Secas como contos separados, depois reunidos pelo editor José Olympio, que também lhe sugere o título. O eixo do enredo é simples e impiedoso. Fabiano e a família são expulsos da fazenda de Tomás da Bolandeira. Na verdade, são relegados à própria sorte e submetidos às poderosas influências do meio ambiente. Assim se põem a caminhar de forma errática pelo sertão calcinado. Buscam fazendas abandonadas, onde possam achar água, abrigo e comida. O leitor mais atento já começa a perceber aqui o drama que se abate por sobre aquele grupo familiar, cuja vida é fugir da seca.
Os opressores da família não são apenas as inclemências do clima, mas também a submissão. Podemos dizer até que a anulação da humanidade dos personagens já está em processo avançado de decomposição moral, material e política. A pesada mão dos coronéis, os donos da terra, como o seu Tomás da Bolandeira, e as forças destrutivas do ambiente são implacáveis. Aos poucos, caminhando com dor, amargura e desespero, os sertanejos, cada um a seu modo, vão se abestalhando. Cada um à sua maneira. É claro! O mais frágil e deslocado nessa paisagem infernal é Fabiano, que se revela covarde e incapaz de reagir às forças que o acossam.
É preciso voltar um pouco no tempo e dizer que Vidas Secas é uma das mais importantes obras do ciclo regional da seca. À frente, pode-se ver a impotência, principalmente do que seria um arremedo do “pai de família” Fabiano. A suprema alienação de todos pode se estender às populações nordestinas, sobretudo às submetidas ao Polígono da Seca.
Não é só a falta de água e de liberdade que assombra, mas também saber que essas estruturas de mando ainda permanecem encasteladas na posse da terra e dos que lá vivem. Sob esse aspecto, o país é todo igual. Milhões de Fabianos submetidos a ferro e fogo pela elite rural, que lucra com a seca. Esta é uma obra que nos ajuda a entender o Brasil.
Lenta e inexoravelmente, o processo de animalização vai manifestando sua cruel fisionomia. Fabiano se acovarda perante o “soldado amarelo”; Sinhá Vitória não consegue produzir palavras inteiras. Fala apenas por monossílabos. Por isso não fala; ela grunhe e aponta as coisas com “os beiços”. O menino mais novo tem adoração pelo pai, cujo vocabulário não deve exceder umas 30 ou 40 palavras. Repete as expressões destroçadas do pai. O menino mais velho é atormentado por termos que não conhece e remetem a um mundo transcendente. Estranha as palavras inferno, espeto quente, caldeirão de azeite... inferno...
Só há na família uma fala ajustada: é o latido da cachorra Baleia, que está sempre caçando ratos preás para a família. Não late, mas geme, pois é o único ser vivo que consegue se alimentar na inclemente caatinga. Foi morta e comida pela família, o mesmo destino do papagaio. Graciliano procede à análise de uma curiosa inversão: a animalização dos personagens humanos e a humanização dos animais. É a forma que o autor acha para expressar seu ódio à sujeição dos migrantes pelas velhas, mas poderosas forças de mando. Os retirantes não andam: ao pisarem o solo com as alpercatas de sola, fazem o mesmo ruído dos cascos dos animais.
Essa família, ao longo da travessia, no rumo da água, trabalho e comida, vai desmoronando. Situação não muito diferente do que ainda acontece por aquelas bandas. As avoantes (aves de arribação) que vinham até há pouco em bandos para saciar a fome do bando bateram as asas e voaram para outras paragens. Essa leitura do Brasil, embora brutal e restrita aos estados da seca, denigre toda cultura que ainda ocupa o campo.
Por fim, é preciso dizer que Graciliano Ramos, literariamente, está ligado ao determinismo, que obriga a rotular a obra como um romance neonaturalista. Há na obra uma clara influência de dois autores da segunda metade do século 19: Aluízio de Azevedo, pelo naturalismo; e Machado de Assis, pelo psicologismo. A narrativa não tem um fim natural: nas derradeiras linhas, a família diminuída já está de novo “em busca da terra prometida”. Mas que terra prometida é essa?
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