Estamos na cidade de São Paulo, com suas inquietações e pioneirismo. A obra que vai embasar nossa viagem de hoje é o romance Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade. O que se vai narrar ocorre nas primeiras décadas do século 20. A vida da classe burguesa paulista é um assombro, delicada e rude ao mesmo tempo. Estamos falando de uma família tradicional, os Souza Costa. Trata-se de um lar com todo um envoltório de valores que os paulistas prezam e que regem como uma orquestra de sentimentos e emoções típicos dessa classe. A família é composta por um patriarca, Souza Costa, de passado meio nebuloso. É uma personagem neutra: nem cheira e nem fede.

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A esposa, dona Laura, tem origem dúbia e caráter um tanto vacilante. Mas a pessoa vital para a narrativa que está a se desenrolar é a empregada de nome Elza, de origem alemã, que passa a ser tratada por Fraulein (“senhorita”, em alemão). Vale dizer que, naquela época, o lar era um educandário: todos eram ensinados em casa. O personagem Carlos, rapaz de 16 anos, precisa ser iniciado sexualmente. O pai e a mãe são hipócritas, já que eles pactuam com Elza. Sem o “trabalho” da alemã, o rapaz está cercado por muitos perigos. Ouçamos o pai, Souza Costa, explicar a dona Laura o acerto que fizera com a Fraulein e o porquê: “Laura, Fraulein tem o meu consentimento. Você sabe! Hoje esses mocinhos... é tão perigoso! Podem cair nas mãos de alguma exploradora! A cidade é uma invasão de aventureiras agora! Como nunca teve! Como nunca teve... Laura, depois isso de ‘principiar’... é tão perigoso”.

A desculpa que dão a Carlos e às outras filhas é de que a governanta vem para ensinar alemão aos filhos de Souza Costa. De início, o jovem Carlos não se dá conta de nada. Mas, lentamente, os dois foram se aproximando um do outro, até que têm a primeira relação. É claro que Carlos, apesar de seus 16 anos, amadurece para a plenitude. E as meninas nada sabem e nunca saberão a causa da demissão da empregada alemã.

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Nesse campo minado, as emoções são as primeiras granadas a explodir

Eis aí, leitor, o universo onde se travarão os grandes embates da moral e dos costumes. A atitude dos pais de Carlos é perfeitamente aceitável porque eles são os fiadores dessa experiência que quase arrasta o único filho para cair no colo de uma empregada pobre e estrangeira. Como uma experiência consentida, os pais, atropelados pela paixão que agora move Carlos e a Fraulein, tratam de reparar esses danos.

O que se observa é que Mário de Andrade pratica, sem qualquer sentimento de culpa, um jogo interessante. É a metalinguagem, quando a língua fala de si mesma; pode-se dizer que o autor exercita e explicita a metalinguagem. Para fora do campo linguístico, temos as grandes questões, como a distensão do amor proibido ao longo da narrativa.

Após a saída de Elza, abafa-se o tendencioso motivo que invade o romance. Os pais de Carlos conseguem manter as aparências ao não permitir que os vizinhos e amigos percebam o que acontecera. Outra preocupação que o casal adota é não deixar contaminar as meninas com o que houve. Essa era uma prática muito natural entre as históricas famílias. A última vez que Carlos vê a Fraulein é em um dia de carnaval em que ela já está com outro “aluno”: Carlos a olha com melancolia e desejo, porque os dois estiveram muito próximos de selar uma relação sem futuro. E definitivamente todos os participantes deste imbróglio devem fazer a vida seguir em frente, como o carro alegórico em que está o grupo da danada da Elza. É carnaval. Carlos pretende levar a vida, agora com as devidas precauções. Afinal, o status da família-modelo paulistana esteve com o pescoço a prêmio. Mas um chute bem acertado nos fundilhos da paixão e ambos estarão prontos para outra. Vão se embora as esperanças; as irmãs ficam cochichando sob a mesa de jantar. Claro que não terão um fim como o da professora Elza.

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Vale também anotar que a linguagem usada pelo autor é ditada pelos modismos modernistas, especialmente a boa carga de coloquialidade. Os vanguardeiros prezam muito em dar uma cor local aos diálogos. Como se pode ver, quase toda a gama de personagens passa praticamente despercebida. A se sobressair, mesmo, apenas o par amoroso. O pai de família, então, transita quase ignorado. Há uma presença sorrateira na narrativa, que são as preocupações da sexualidade, via Sigmund Freud. É um grito que vara os ares, proferido por Carlos: “Eu tenho a força!” O He-Man, infelizmente, ainda está longe no futuro dos Carlos da vida. Do herói ao complexado, trilha-se o calvário dos problemas sexuais.

Quanto à estratégia narrativa, o romance é escrito em terceira pessoa por um narrador que sabe tudo, onisciente. Isso não impede que ele dialogue diretamente com o leitor. Há várias leituras secundárias que subjazem à história: temas sociais, culturais e morais, como as diferenças entre os estrangeiros e os brasileiros.

E, para dirimir mais uma questão, pergunto: Carlos, na verdade, ama incondicionalmente? O néscio Souza Costa comete um delito moral ao permitir que as experiências de educar o filho em casa quase descambassem para uma tragédia ou suicídio. Carlos apenas se conforma com a perda da ”namorada” depois que o pai lhe deixa claro que tudo fora planejado. Nesse campo minado, as emoções são as primeiras granadas a explodir. Carlos nunca mais será o mesmo. E o pai dele? Fraulein era namoradeira? Leviana? Libertina? Não há que temer o bolor que assenta em culpas por demais assentadas. Afinal, a alemã Elza é séria ou não? Caso se casasse com Carlos, seria por amor, por mera paixão da juventude ou para manter o status? Vá saber!

Para encerrar, vejamos mais de perto (e ao fim) a questão do título: A Fraulein ama Carlos. Carlos é objeto direto, porque quem ama ama alguém. O verbo “amar” é transitivo direto. Vejam a sutileza do autor: quando ele diz que amar é “verbo intransitivo”, trata-se de amor sem objeto, impossível. Carlos ama! Mas cadê o objeto que devia estar aí? Eis a falta do objeto, logo a expressão não diz nada: este é o amar sem objeto. Intransitivo. O autor diz claramente que o amor dos dois era proibido devido ao imenso fosso social que os separa. Não podem, pois, se apaixonar. Neste caso, devido às diferenças sociais, o amor é definitivamente vetado aos amantes paulistanos. Esses modernistas... As “línguas naturais” são ferramentas de comunicação bastante lúdicas, mas... nem tanto! Nem tanto!