Isto tudo ocorre no distante século 8.º. Estamos em pleno topo das montanhas Calpe, que ficam ao norte, aquém das escarpas que marcam o Estreito de Gibraltar. A paisagem que se vê vai até os confins do horizonte. Mas Pelágio e Eurico, o presbítero, se assombram com a quantidade de embarcações que vomitam pontos negros aos borbotões Serão formigas? Não: é a colmeia maldita de guerreiros de Alá, invadindo a Ibéria pelo estreito, chamado pelos gregos “Colunas de Hércules”. Eurico é interpelado por Pelágio, para que lhe explique a origem do nome dessas imensas línguas de água que ligam o Atlântico ao Mediterrâneo. Enquanto isso, as hordas escuras de sarracenos não param de desembarcar em terra histórica e de insigne denominação. A origem da palavra, segundo teorias, provém do nome de uma montanha conhecida por Calpe. Essa elevação é estratégica, porque os árabes percebem que o lugar é, do ponto de vista militar, inconquistável. Invencível como a cidade do Porto.
“Mas, caro Eurico! Como foi que essa palavra adquiriu o significado atual? O que fazer?”
“Organizar suas defesas para deter o vagalhão de sarracenos?”
“Isso basta! Porque somos cristãos e nossos estandartes também já estão desfraldados”, disse Pelágio, irmão da princesa goda e cristã. E, para falar a verdade, basta saber que a luta vai ser explosiva e desigual. Vamos entrar em combate! “Andem! Alinhem mais homens naquele flanco ali, pois os árabes estão começando a vencer e a invadir-nos”.
É crucial dizer que, na atual Península Ibérica, se usa a designação de Espanha; no tempo dos romanos, era Hispânia. No caso da pátria portuguesa, os mesmos romanos chamam a região de Lusitânia, onde habita um povo agressivo e de bons combatentes: os lusos. Enfim, a origem do nome atual de Gibraltar tanto pode remeter apenas a um acidente geográfico como ser uma questão da procedência da palavra. A outra montanha está na África, donde se origina a invasão. Ao largo, para leste e oeste, sobressai o Mar Mediterrâneo, “mar do meio”, denominado Mare Nostrum (“nosso mar”) pelos os romanos. Os istmos recebem o nome de Gebal Tarique (“monte de Tarique”) e Gebal al Fetah (“monte da entrada”). Da palavra Gebal Tarique se origina o nome atual, Gibraltar.
Os personagens vivem em uma era bem remota, mas os valores humanos são sempre os mesmos
Ainda bem que têm barcos, porque o estreito é perigoso e fatal. Os barcos trazem até a cavalaria mourisca. Os combates deverão ser violentos; uma espécie de cristianismo arcaico versus o Islã. Ao se espalhar pela península, vão travando batalhas setoriais e escaramuças. A Ibéria é governada por bárbaros godos já convertidos, é claro! Vejam que a condição sacerdotal de Eurico vai causar vários conflitos que mostram a influência da vida do meio clerical sobre a vida profana. Caro leitor, não tire os olhos das lutas contra os mouros, pois estão para acontecer episódios grandiosos e dramáticos. Hermengarda, irmã de Pelágio, duque de Calábria, conhece e se apaixona perdidamente por Eurico. Todavia, o chefe mourisco, em seu acampamento na Hispânia, ordena que sejam feitos prisioneiros. Um batalhão de árabes assalta o convento onde vive Hermengarda.
Qual a importância de Hermengarda para o desenvolvimento da trama? Eurico a conhece e a ama perdidamente. Será preciso que os cristãos ajam rápido. Eurico, intensamente apaixonado, pretende resgatá-la. Vale dizer que Hermengarda e Eurico se apaixonaram no convívio junto à corte do duque godo Favila, pai da eleita de Eurico. Na época, a Hispânia estava povoada por tribos bárbaras de um grande e dividido povo: godos, visigodos e ostrogodos, aparentados e originários da Ásia Central.
Os godos, embora oriundos do centro da Ásia, usam uma língua de influência germânica. É a hora de colocarmos em ação a figura de Pelágio. Os inimigos islamitas organizam um destacamento e assaltam o mosteiro onde Hermengarda chora e deplora a ausência de Eurico. Cativa, a moça prendada é conduzida para o acampamento bárbaro. O guerreiro sarraceno Abdul Aziz, temido e audaz, fica responsável pela segurança da princesa. Nesse meio tempo, Eurico cai em profunda depressão; seu amor por Hermengarda é tão desmesurado que ele praticamente enlouquece. Eurico, enquanto sacerdote, não pôde conhecer o amor profano porque aceitou o celibato, fez os votos sacerdotais. Desespera-se e resolve se transformar em um guerreiro, cuja ferocidade o inimigo respeita. Está para se tornar um prodígio. Tudo é mistério: afamado por usar sempre uma armadura negra, incógnito, passa a se denominar “Cavaleiro Negro”. Sua ferocidade aumenta com a notícia de que Hermengarda sofre no convento.
Tempos depois, ela está presa no acampamento árabe. O Cavaleiro Negro, vítima da paixão, ainda não sabe desse drama: o apaixonado godo assalta sozinho o acampamento mourisco e, acossado pelo mouro Abdul Aziz, foge com a sua eleita para as montanhas, onde se esconde em uma caverna histórica. Ao chegar a Covadonga, a princesa desmaia. O herói e clérigo Eurico deposita o corpo dela no chão de relva macia da entrada da caverna e espera que acorde. Hermengarda, grata, se declara ao grande guerreiro, que tira a armadura e se dá a conhecer. O clímax do romance entre ambos explode por renúncia e desespero: sem a máscara, a princesa goda reconhece Eurico, fazendo-lhe declarações, como “Meu amor, sem você eu não sou ninguém” (este verso e melodia não lhe são familiares?), “Por que demoraste tanto?”, “Por que abalas mais ainda meu coração sofredor?”, “Não suporto mais tua ausência. Meu amor é um raio de luar que pede outro”.
Eurico se vê compelido a dizer-lhe a verdade: é presbítero e, como adota o celibato, a união deles é absolutamente inexequível. O desespero dos dois é intenso e de alta voltagem. Por fora deste circuito romântico, as batalhas entre árabes e godos estão a pleno vapor. Fruto da situação criada, vem o desenlace: Hermengarda resolve largar tudo e se internar em um convento, onde enlouquece. Eurico, o “Cavaleiro Negro”, romântico por natureza, bom poeta e bom cantor, resolve se matar. Atira-se, furioso, em um combate suicida.
Como romance, a história se enquadra no estilo de época, o Romantismo, que antecede o Realismo. O autor, Alexandre Herculano, vai mostrando na narrativa os ingredientes desse estilo: um copo cheio de subjetividade; uma sopa de lirismo; uma lasca de nativismo ou nacionalismo; um naco de razão contra a emoção. Vigas mestras do estilo da época romântica. A linguagem é retórica, repleta de adjetivos, marca registrada desse modo de sentir e escrever. O sentimento é valorizado, assim como o nativismo. Herculano sabe que seus personagens vivem em uma era bem remota, mas os valores humanos são os mesmos. A valorização do sentimento sobre a razão, por exemplo. O estilo até que é bastante simples e clássico. Por tudo isso, não há como negar que a obra esteja repleta de religiosidade e nacionalismo. No Brasil, autores como José de Alencar disputam palmo a palmo com Herculano a supremacia sobre o romance histórico e indianista, como O Guarani e Iracema.
Vocês, leitores, já sabem que a base de nosso patriotismo é o grande apego aos símbolos da nação. O drama finca o pé e não arreda. Frise-se também a abundância de personagens, protagonistas ou não. O amor é o foco da literatura romântica. Os povos islâmicos ainda estão a passar da África para a Ibéria. Este quadro continua ainda nos dias de hoje. Esses povos vagam pelas campinas e desertos do Norte da África e da Ásia, gerando um fenômeno social, político e histórico a que chamamos de “imigração clandestina.” Não esqueçam que Eurico e Hermengarda representam dois mundos opostos, mas o amor dissolve essa azia mesclada ao ácido muriático e água sanitária. Coquetel indigesto! E, como dizia Herculano, “cada um cuida do que é seu. o amor tem suas dores e justos sabores. O sentimento do amor é tão nobre como o sacramento”. Um lamento final do narrador e autor: “Tu, Hermengarda, recordares-te!? Mentira... Crês que morri. Ou, por ventura, nem isso crês que morri, ou, porventura, nem isso crês; porque, para creres, era preciso lembrares-te, e nem uma só vez te lembrarás de mim!”
Oremos por Eurico. Estão todos convidados para o funeral. Os restos mortais do godo se espalham pelo campo de batalha. Conta-se que somente o crânio foi achado, sem a máscara negra. E o que era bom acabou-se.
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