Edgar Allan Poe foi o pai das narrativas curtas de mistério, terror, sondagem dos impulsos tenebrosos e dos desejos obscuros da alma humana. Há de considerar desde já que ele eclode em pleno Romantismo com a proposta de se postar a serviço não do idealismo e sentimentalismo desse estilo de época. Em seus escritos, não se notam traços da estética romântica. Talvez Álvares de Azevedo (Noites na Taberna) seja o poeta meio macabro e mórbido que se parece com ele. O criador de “O gato preto” caminha em outra direção: os contrastes do estilo barroco cobrem com um manto de chumbo os anseios do narrador, que resvalam logo para o mundo da treva versus luz, reminiscências do estilo gótico medieval.
Por que, então, teríamos de considerar a obra de Poe bastante descolada da sua época, que foi a primeira metade do século 19? A crítica o considera tão deslocado no panorama mundial que só podemos rotulá-lo se dissermos que ele foi precursor de autores como Stephen King, outro mago do terror. Poe nasceu em Boston, de onde dissemina sua inusitada obra por toda a Europa, no início da era contemporânea.
Em seus contos, precursores da literatura fantástica do século 20, ele capta as vicissitudes de temperamentos neuróticos e psicopáticos, que aplica na construção de personagens. O autor-narrador é onisciente e vai, passo a passo, esquadrinhar os cantos mais obscuros dos tipos humanos. A atmosfera dos contos é assustadora, pois mergulha em ambientes escuros e esfumaçados. Tudo bem adequado, já que o autor era alcoólatra. Vive submerso nos bares de Boston e morre precocemente aos 40 anos, corroído pelas bebidas destiladas, dentro de um bar em Baltimore.
Dentre sua numerosa obra, apesar da curta vida, destacam-se essas Histórias extraordinárias. São seis relatos breves, dentre os quais se destaca “O gato preto”. O narrador sem nome conhece os fatos da história curta, pois também é personagem. Sabemos que os outros personagens importantes são dois gatos pretos (será que há dois gatos pretos?) e, secundariamente, a esposa do narrador, personagem plana. Os outros protagonistas são redondos. Todos ocupam diferentes nichos na ordem dos acontecimentos. Vamos a eles.
Em seus contos, Poe capta as vicissitudes de temperamentos neuróticos e psicopáticos
O mencionado narrador é homem casado, mas a esposa é praticamente “invisível”. Ele a trata com indiferença, pois está obcecado pela ânsia de entender os fatos extraordinários e terríveis que estão ocorrendo com ele. Ambos apreciam animais de estimação. A mulher lhe traz um gato soberbo, o Plutão, gesto apreciado pelo marido. Apesar de estimar animais, o narrador percebe que vai se impregnando de coisas ruins. Seu temperamento declina; fica taciturno e indiferente aos sentimentos dos outros. Até o gato sofre com esse comportamento, inclusive com violência física. Trata-se de uma atitude paradoxal, fruto de suas ideias mórbidas e cruéis. A que se deverá atribuir essa mudança do narrador-autor?
O ambiente doméstico está cada vez mais envenenado. Plutão é atingido pela extrema violência que seu dono destila. O clímax ocorre quando o narrador, com um canivete, arranca um olho de Plutão. Ele se recupera, mas o felino passa a exibir um aspecto grotesco. Perversidade é o nome do que fez ao gato. Todavia o pior ainda está por vir. Em um acesso estranho de maldade, o narrador arma um laço e enforca o felino. Vem-lhe o remorso, mas, quando se lembra do que fez, até o sadismo lhe dá grande prazer.
Na sequência, a casa é destruída por um incêndio. Apenas uma parede fica em pé, o que causa estranheza. O narrador pensa ter visto outro gato (meio sobrenatural), com uma marca de enforcamento. O terror se apressa em apresentar novas evidências de sua loucura e abominação. É bom lembrar que ele já havia assassinado a esposa, cujo corpo enterra em uma parede do porão.
O fantasma do gato, com a marca do enforcamento no pelo branco, o persegue e atormenta. Ele não tem certeza de que esse segundo gato seja o falecido Plutão, mas o fantasma dele. Ele se pergunta: “Não seria coisa de bruxas?” Talvez sim; talvez não. Outro mistério: esse gato fantasmagórico que odeia profundamente também exibe a horrenda órbita ocular vazia, como Plutão.
A esposa, como sabem, foi emparedada no porão, em uma parte ainda úmida do reboco. Foi fácil colocar o corpo e cobri-lo com argamassa. Os vizinhos, que acorreram para ver os estragos do incêndio, são apenas espectadores. É hora de aparecerem outros importantes personagens: o corpo de bombeiros e a polícia, que investiga o sumiço da esposa. Ela foi morta, agora se sabe, com uma machadada no crânio. Teria havido, leitor, razões para o narrador cometer semelhante barbárie?
Acompanhado pela polícia, que vasculha tudo o que sobrou da casa, todos vão parar na parte do porão em que uma parede dupla ficou de pé. Nesse momento, o narrador pensa ouvir algo arrepiante: “um grito, a princípio abafado e interrompido, totalmente anômalo e inumano – um uivo –, um guincho lamentoso...” Marcante momento é esse em que o diabólico uxoricida (diz-se daquele que mata a esposa – uxor, em latim), dotado de um potente cajado, bate cada vez com mais força na parede onde a cobertura com cimento e cal é recente. É o lugar onde emparedou a mulher em pé. A parede cede porque é recente. Para o horror de todos, surge o cadáver de um gato preto acima do esqueleto da indigitada mulher. O corpo do gato já está em adiantado estado de decomposição; digamos: putrefato.
Haverá em sua opinião, caro leitor, alguma razão para a morte tão violenta e macabra da mulher? Pensemos no fato de que quem narra ultrapassa dois estilos de época: o Romantismo para a frente e o Barroco para trás. Vejamos: o Romantismo se inicia na primeira metade do século 19, ou no fim do 18. Não se veem também vestígios do Arcadismo. O brilhante poeta americano talvez possa ser considerado o que os críticos chamam de “poetas malditos” ou os noirs (ou deslocados e inovadores), que também têm raízes na literatura barroca, no século 17. Dessa forma, em sentido inverso, o autor que narra também estaria antecipando o longínquo Simbolismo que tem afinidades, também distantes, com a estética do Gótico medieval. Difícil situá-lo, porque está aquém e além do seu tempo. Mais um passo e se tornaria precursor da pós-modernidade. Fiquemos com a designação de precursor, meio deslocado do seu tempo. Por isso, sua obra é atemporal e original.
“O gato preto” é, de fato, uma obra prima influenciada pelo gótico tardio, impregnado também pelas sombras barrocas (vejam o exemplo das soturnas e magistrais telas barrocas de El Greco), mas que passa ao largo do Classicismo e do Arcadismo. Obras de leitura obrigatória, Histórias extraordinárias e o conto “O gato preto” são exemplos vivos de como os estilos de época se interpenetram. É evidente que todos os contistas contemporâneos leram sua cartilha. Mesmo na poesia minimalista de Dalton Trevisan isso está presente. Nesse caso, o “personagem maldito” não seria um gato assombrador, mas o nosso apreciado “Vampiro de Curitiba”? E, afinal, para frisar: quantos gatos nos aterrorizaram neste conto? Qual será o grande erro que o narrador-assassino comete? Como o “fantasma“ do gato preto foi parar dentro da parede junto ao esqueleto da esposa? Os vizinhos só lamentam os miados horripilantes, que varrem as noites e a mente destroçada deles e do narrador. Ele narra desde o início na primeira pessoa e “constata que havia emparedado o monstro dentro da tumba”. Nunca mais se ouviram os horrendos miados. E agora, leitor, o que fará quando ouvir um gato e não o vir?
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