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Peça famosíssima do teatro popular nordestino, O Santo e a Porca, de Ariano Suassuna, premia o criador do Movimento Armorial. Ao valorizar essa cultura, Suassuna pretende a expansão dos princípios de importante fase da cultura brasileira. A volta às raízes, em suas mais variadas expressões, é o núcleo fundamental do Movimento e dessa peça. Aparentada com a Comédia de Enganos medieval, tanto pode ser vista como uma farsa ou sátira, como as do grego Aristófanes. O autor revela a influência que teve: a obra Aululária, de Plauto – mas, ao fim, se afasta bastante do autor romano.

Os personagens são todos calcados nos tipos emblemáticos da cultura do Nordeste, mas, remotamente, essa saborosa comédia de enganos nos transporta para os portões da Alta Idade Média. Euricão, o árabe “engole-cobra”, desponta como o personagem principal. Ele encerra em si o mito do estrangeiro que bate com os costados aqui, no Brasil, para sofrer o castigo de seus ajustes à vida e ao trato com os empregados.

A peça prima pela simplicidade, narrando os conflitos entre o “Árabe” e os demais personagens. Os castigos virão a cavalo. Uma das provas mais importantes para ilustrar a alienação do protagonista é a confusão que se instaura em sua cabeça, entre o mundo material (a Porca) e o espiritual (Santo Antônio).

A justiça social é feita mais pelos castigos do que pela sagacidade dos exploradores

Sua avareza é tanta que, ao usar de artimanhas para guardar dinheiro, se vê perseguido pelos efeitos deletérios dessa atitude. Como se diz popularmente, esse sujeito “está por fora”. Depois de se aproveitar de todos, em diferentes situações, como falta de pagamento e sovinice, sua irmã Benona e a empregada Caroba descobrem que o chefe enterrara seu cofre – uma porca de madeira – ao lado da cova de sua finada mulher. Elas a roubam e começam a chantagear o patrão. Os enganos e a sátira saltam por todos os ambientes da peça, em meio a gargalhadas, confusões e humor, bem ao sabor da farsa medieval.

Outros personagens vão desfilando suas encrencas pelos meandros da engraçada peça de sabor popular. Eudoro, fazendeiro rico, quer se casar com a filha de Euricão, Margarida – o verdadeiro tesouro do pão-duro. Dodó, filho de Eudoro, é o namorado de Margarida. A soma desses conflitos se acelera a partir do momento em que os criados descobrem as safanagens de Euricão e partem para cima do patrão. É nobre aceitar que todos os empregados alimentem diferentes projetos de vida.

Quando o protagonista descobre que, na Porca devolvida, só há dinheiro sem valor, se lastima com Santo Antônio, o santo protetor. Nessa confusão que rodeia Eurico todos os personagens atingem seus objetivos, em meio a grande júbilo e confusão. Todos “se pagam” e o velho árabe é o único a cair nas mãos da mais funda solidão, isolado pelos seus defeitos.

A peça, agitada e, por vezes, também burlesca, enfatiza os estereótipos da região nordestina, calcados nas tradições populares. A esperteza dos personagens é o que mais sobressai. A exploração dos pobres é mais um símbolo de um sistema social injusto e predador. A justiça social é feita, pois, mais pelos castigos do que pela sagacidade dos exploradores, os quais acabam pagando a conta dos seus enganos. Trata-se de uma sociedade altamente estratificada, em que os mais fortes pilham os mais frágeis. A justiça é traçada e efetivada pelas engrenagens dos costumes populares. Suas armas são a contestação e a destreza que os humildes revelam ao pôr de joelhos (às vezes) os grandes satãs dos maus-tratos e das ladroeiras.

Ao fim da peça (mais intensa e divertida do que este texto pode fazer parecer), a figura do estrangeiro espoliador nos dá vontade de “ter pena”. Mas é assim que rodam as engrenagens deste mundo: quem pode pode, quem não pode se sacode. O caro leitor estaria tentado a ter pena do opressor alienado Eurico? Como será a vida dele depois desses eventos? O duro é que neste país há mais Carobas, Benonas e Pinhões do que tios Patinhas – um apelido adequado ao sacripanta Árabe Engole-Cobra. O certo é pedir o salário adiantado para esses endinheirados de uma figa, dinheiro que não está na Porca oca, mas em paraísos fiscais ou cuecas. Depois de acertadas as contas com todos os seus servidores, Euricão faz uma última pergunta a Santo Antônio, santo de sua devoção: “o que terá acontecido?” É sua vez, leitor!

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