O terreno em que estamos para adentrar é espinhoso: trata-se de invadir a vasta seara do grande Machado de Assis. Sobre estes contos que formam a antologia Várias Histórias há profundas reflexões a fazer. A primeira é entender o dialogismo que Machado trava com um autor de sua grandeza: William Shakespeare. Por sinal, A Cartomante, como narrativa curta, dá o primeiro passo com uma citação bíblica arrancada do autor britânico, um dos maiores homens de letras da cultura ocidental. O bruxo do Cosme Velho sofreu enorme influência de Shakespeare.
O leitor deve, desde já, estar preparado para não se enlear muito pela visão cruel da vida que ambos, o bardo inglês e o nosso “Machadinho” (apelido da juventude), refletem. Especialmente em A Cartomante o leitor deve esperar, desde logo, o profundo conhecimento psicológico que Machado tem dos personagens. A alma humana é dissecada por ele. Certa feita, em aula, eu disse que ele era “cirurgião do espírito humano”.
Machado se compraz em expor as fraturas do tecido social, que subjazem a seus personagens, para mostrar seus piores vícios: as fantasias de conduta, a troca de favores; o culto das aparências; a burguesia hipócrita da época. O leitor que se prepare para ficar face a face com os monstros morais que o autor esculpe. Todos querem subir na vida e, para tanto, fazem de tudo para alcançar os objetivos.
Ninguém fica impune, os personagens todos responderão por seus atos
O leitor não perde por esperar: o autor vai autopsiando os personagens no plano moral e social. Sua densa literatura é repleta de senso de humor, ironia, ceticismo e uma linguagem absolutamente genial, que explora os meandros da língua portuguesa como ninguém. Ao falar da linguagem de Machado, é preciso separar o joio do trigo: muitos não gostam de ler Machado porque há muitos termos de época e o estilo é repleto de expressões de efeito. Leiam-no e aproveitem.
Em seus contos, parece que nada falta e nada sobra. São obras-primas, equilibradas entre a densidade dos enredos e a linguagem absolutamente original. Machado invade também o campo da filosofia, produzindo reflexões apuradas sobre a vida e os valores humanos.
Com ele, não há meios termos: o conto A Cartomante já inicia com um triângulo amoroso: a jovem esposa de Vilela, Rita, é amante de Camilo. Todos sabem como geralmente é trágico o fim desses casos. É como antever o previsível desfecho. A frase do Eclesiastes que abre o conto – “Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia” – veio para cá por intermédio da peça Hamlet, de Shakespeare. Aí já está o resumo do que vai acontecer na história desses românticos enamorados. Machado reza a cartilha: quem se queima com fogo vai temê-lo para sempre. Ninguém fica impune, os personagens todos responderão por seus atos.
A cartomante assegura aos ragazzi innamorati que tudo vai dar certo. O leitor, que bate estas teclas comigo, já deve ter pressentido o que vem por aí: sangue, lágrimas ou alegria e felicidade para o par romântico. Este conto pode ser um manual de educação psicológica, de ética comportamental. Todos os vértices do triângulo vão sofrer as consequências. Neste mundo nada fica impune. E Deus? Por onde andará? Na visão de vida de Machado, não há lugar para o imponderável. Todos pagam suas contas.
Considero a obra do autor um manual de instruções para não se dar bem na vida. Muitas pessoas se julgam a salvo do destino certo dos que ofendem os valores constituídos. Iludidos pela cartomante, Rita e Camilo prosseguem a vida alegremente, enquanto traem Vilela e acreditam cegamente naquela mulher asquerosa que lhes prediz exatamente o contrário do que esperam da vida. Mesmo após receberem várias cartas anônimas, avisando-os de que o caso deles já era público, teimam em continuar a trair Vilela. Ao leitor, peço que reflita sobre o poderoso efeito que os atos questionáveis podem produzir no tecido social. Ignoram as cartas: assim como querem acreditar na cartomante, que diz, a um de cada vez, exatamente o que querem ouvir.
Machado é pessimista e trágico? Materialista, ateu e cético como poucos. A desgraça humana se esparrama por todas as páginas deste que é considerado um de seus melhores contos. De súbito, estando Camilo e Rita em colóquio amoroso, chega um mensageiro com um bilhete de Vilela para Camilo: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”.
Ambos se sobressaltam. O que Vilela queria? Camilo, de início, aterroriza-se. Rita releva o fato porque a cartomante lhe tinha dito que não era nada. E obriga Camilo a ir à casa de Vilela ver do que se tratava. Camilo é uma grota de pânico; Rita arredonda o pavor do amante lhe dizendo que não era nada, porque a adivinha o dissera. Mais uma vez a estupidez do ser humano se manifesta na plenitude. O homem é o único animal da face da terra que pula no abismo de olhos abertos, e assim será. A universalidade dos temas de Machado está prestes a produzir resultados esperados ou inesperados? Eis a casa de Vilela à vista. Camilo vem alojado em um tílburi confortável.
Bate à porta. Vilela aparece “com as feições decompostas”. Tem uma arma apontada para o rosto de Camilo, que, antes de lhe serem desferidos dois tiros, ainda teve tempo de ver num relance o corpo ensanguentado de Rita, sobre um canapê. O final é ou não é previsível? O que os dois amantes esperavam a não ser um desfecho desses? Na época, a honra se lavava com sangue.
Com licença do nosso “cirurgião da alma”, proponho um desfecho que não desmerece o do autor. No lugar de Vilela, sabedor da traição de ambos, deixá-los-ia impunes. Vilela só tem a perder dando cabo da vida dos dois. Seria acusado de duplo homicídio qualificado e sua vida social estará acabada. Os dois se merecem; Vilela é um homem íntegro. Se este narrador pudesse falar ao Vilela, lhe diria que não vale a pena porque os dois, ao violarem a ética mais prosaica, merecem ficar juntos. Eles são farinha do mesmo saco.
Será um castigo exemplar. Por quanto tempo ficarão juntos? Camilo e Rita jamais confiarão um no outro. Que tal, leitor? Mas veja bem: o que vai valer na prova é a solução de Vilela. E a(s) cartomante(s)?
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