As estrelas sempre fascinaram os seres humanos. Dos seus percursos pelo céu criaram-se ciências e superstições, seu brilho inspirou poesias e metáforas, suas posições indicaram os caminhos. Hoje em dia, todavia, um terço da população – basicamente todos os que vivem em cidades grandes – simplesmente não consegue mais ver a Via-Láctea. O centro de nossa galáxia, que guiava os peregrinos no Caminho de Santiago, a mancha de luz no céu noturno que fascinou inúmeras gerações de curiosos e estudiosos, tornou-se invisível para um terço dos homens.
Eu, que moro na roça, fui poupado disso; já passei muitas noites deitado na varanda, apreciando sua beleza multicor; afinal, devido à poluição ela não é mais tão “láctea” assim, mesmo quando a podemos ver claramente. Quando, contudo, uns sujeitos da cidade compraram um terreno no mesmo vale, em que até então só havia minha família e outra, acabou a festa. Eles construíram chalés para fim de semana e instalaram holofotes potentíssimos em torno deles.
Um terço da população simplesmente não consegue mais ver a Via-Láctea
Da noite de sexta à de domingo a Via-Láctea desapareceu, bem como quase todas as estrelas do céu. A absurda poluição luminosa com que eles tentam fazer do campo um sucedâneo de cidade não atrapalha apenas a eles, mas a todos os demais. Ao tentar ver muito bem o entorno imediato dos chalés – talvez pelo vício urbano de temer ladrões –, eles negam a todos a beleza do resto da Criação. O vale, que se podia perceber desenhado em negro nas noites sem lua, com a luz das estrelas por cima, torna-se, assim que a eletricidade flui pelos holofotes, um buraco negro que se mistura a um céu tão negro quanto o da pior das tempestades, enquanto o feio entorno de dois chalés feios brilha como Hiroshima. A poluição é tamanha que pode ser percebida ainda no asfalto, quilômetros antes do discreto início da estrada de terra que leva ao vale. Evidentemente, atrair a atenção assim para o vale aumenta tremendamente o risco de ladrões, mas isso lhes escapa completamente à compreensão.
Não é uma loucura particular, mas um erro de base na forma de ver a vida e o mundo o que tais atos revelam. É uma forma de prisão, na verdade; uma miopia da alma que impede que se veja mais ao longe. É ela que faz com que muita gente se apegue a uma questiúncula qualquer de política, ou mesmo de gosto, e passe a pautar a vida a partir daquele detalhe, que é tão insignificante na ordem geral das coisas quanto o terreiro dos chalés no vale o é em relação à Via-Láctea. O mundo passa a ser dividido entre “nós”, que estaríamos “na luz”, e “eles”: tudo o que percebemos como negro, vazio e ameaçador, justamente por acharmos que se cegar ao distante é um preço baixo a pagar para iluminar o familiar.
Prefiro ver as estrelas.
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