Parece haver algo mágico nos números com que marcamos o tempo. Não há rigorosamente nada de diferente previsto para acontecer hoje à noite, mas poucos ignoram aquele momento em que acaba um ano e começa outro.

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A tradição moral ocidental ensina a examinar a própria consciência toda noite antes de dormir: o que fizemos de errado? Como poderíamos ter agido melhor? No dia seguinte, ao acordar, somos instados a buscar caminhos para evitar cometer novamente os mesmos erros. Faz sentido, mas infelizmente a decadência da nossa cultura levou o remédio para dormir a substituir o exame de consciência e o antidepressivo a substituir as resoluções matinais.

Sugiro que nos proponhamos, em 2016, a sorrir mais, amar mais, perdoar mais

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A natureza humana, todavia, continua a mesma, e continuamos examinando o passado e projetando um futuro melhor. Agora, no fim do ano, fazemos socialmente o que antes faríamos individualmente a cada dia. É o anoitecer de um ano, amalgamado pela vigília festiva ao amanhecer de outro. O que aconteceu em 2015? O que gostaríamos que acontecesse em 2016? A retrospectiva acaba sendo apenas social – tais e tais acontecimentos políticos ou culturais, tais e tais expectativas e resultados –, sem que examinemos bem o que nós mesmos fizemos. Daí, claro, acabam deixando a desejar as resoluções. Resolvemos fazer isto ou aquilo, sem pensar no que nos impediu de o fazer no ano que acaba. Fica difícil.

Na verdade, o ano que vem acaba sendo mera – e previsível – continuação do ano que passou. As sementes plantadas num ano brotam no outro, as fissuras iniciados num ano fazem-se abismos no outro, os amores surgem, os casais se casam, os bebês nascem, as crianças brincam e ralam os joelhinhos, os rapazes brigam, as mocinhas se apaixonam, as mães se preocupam, os pais dão broncas rindo por dentro, as avós dão comida (muita comida!), e tudo vai como dantes no quartel de Abrantes.

É esta preponderância do bem que nos faz continuar a viver e a amar, que nos faz sair de casa assoviando mesmo com a criminalidade absurda que nos espreita lá fora. É a doçura das pequenas e preciosíssimas alegrias que compõem a vida que acaba demonstrando a verdadeira – e ínfima! – importância das barbaridades da política. As flores continuam brotando, música boa continua sendo composta e tocada, bons livros continuam sendo escritos, e a vida continua valendo a pena.

As retrospectivas de 2015 certamente deixaram isto de lado. As nossas resoluções, no mesmo trilho, provavelmente também ignoraram o principal. Damos uma atenção danada a besteiras irrelevantes – que historiador saberá quem foi o Cunha? – e nos propomos bobagens ainda maiores: daqui a dez anos, quem se lembrará de qual celular comprou em 2016?

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Sugiro que nos proponhamos, em 2016, a sorrir mais, amar mais, perdoar mais.