Quando Ortega y Gasset escreveu sua Rebelião das Massas, quase 90 anos atrás, ele precisou a figura do “senhorito satisfeito”. É alguém que se congratula pelo que outros fizeram, que acha que toda a civilização e cultura que o circundam caíram prontas do céu, porque ele merece. Sorridente, ele dá tapinhas nas próprias costas e celebra incessantemente a si mesmo, a seu próprio gosto, a sua própria situação.
Não se trata de alguém que busca melhorar, nem sequer de alguém que alcance aquele mínimo socrático de sabedoria que consiste em saber que não sabe, e assim ver-se compelido a procurar aprender. Não; ele é como um herdeiro que só faz dissipar os bens que seus ancestrais conquistaram, na certeza confiante de merecer cada mimo que se dá. O máximo que pode buscar em termos de novo conhecimento é alguma sofisticação passiva, como fazer um curso de apreciação de vinhos ou de cervejas. Afinal, ele sabe que merece uma boa cerveja, ele sabe que merece um bom vinho.
O senhorito satisfeito se reconhece no Chico Buarque e considera quase como mérito próprio o talento poético e a “luta contra a ditadura” do compositor
Esta triste figura arquetípica existe, aos magotes, na burguesia decadente das capitais brasileiras. Ele se reconhece no Chico Buarque, e considera quase como mérito próprio o talento poético e a “luta contra a ditadura” do compositor. Xingar o Chico, para ele, é quebrar a santa. Não por alguma suposta santidade intrínseca buarquiana, todavia; o compositor é apenas um espelho, em que ele vê o seu reflexo melhorado. A música do Chico é fácil de cantar, apesar dos malabarismos métricos e poéticos; o senhorito apossa-se dela ao repetir as estrofes rimadas, sem afinação nem esforço, e se sente à vontade. Congratula-se pelo bom gosto, que o torna praticamente um igual do compositor.
Os intelectuais em que se reconhece – pois reconhecer-se, para o senhorito satisfeito, é fundamental – são os de sempre: Verissimo, Jô e quem mais demonstrar uma inteligência rápida, mas que não demande referências ulteriores, com tiradas que precisam apenas de uma rápida leitura para serem apropriadas pelo leitor. Um pensador que trouxesse algo novo, que exigisse estudo, não teria interesse algum; o importante é o que pode ser apropriado sem esforço, aceito como herança merecida.
Ele ama os pobres, claro. Não, contudo, os que vão à praia de carro velho, têm nome inventado, ouvem música ruim e levam a religião a sério: estes são insuportáveis. Ele ama os pobres que sobem no coqueiro para tirar coco, que dançam folias folclóricas com roupas típicas, que se chamam Dona Maria e Seu Sebastião. Estes são os bons selvagens, pessoas simples e humildes, o Brasil de verdade!
Estes senhoritos formavam o cerne do eleitorado do PT, quando ainda na oposição. São eles ainda os únicos a defendê-lo sem ganhar mortadela ou dinheiro por isso.