No tempo de Jesus os mestres usavam frequentemente as bem-aventuranças e as maldições para transmitir os seus ensinamentos. Mateus (Mt 5,1-12) e Lucas 6,20-26), cada um com sua versão, nos transmitem uma longa lista de bem-aventuranças. Comparemos as duas listas e observemos as diferenças. Alguém talvez se sinta um tanto perplexo, ao constatar que os dois textos não estão em perfeita harmonia.

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Acontece com frequência, nos Evangelhos, que os fatos da vida de Jesus, e os seus ensinamentos sejam narrados de forma diferentes e nos perguntam se não seria melhor unificar os quatro textos num só, eliminando as diferenças. Alguém já tentou fazer isso, mas as consequências foram desastrosas: originou-se uma tremenda confusão! Deve-se prestar muita atenção para não confundir um trecho, narrado por um evangelista, com semelhante, narrado por outro. Hoje tentaremos entender o que pretendem nos ensinar as bem-aventuranças relatadas por Lucas; as de Mateus ficarão para o próximo ano.

É interessante, porém, observar as diferenças entre os dois evangelistas. Em Mateus, Jesus proclama as bem-aventuranças do alto de uma montanha, ao passo, que em Lucas, os anuncia numa planície. Este pormenor, porém, não tem muita importância. Mais significativo é o fato que, em Mateus, as bem-aventuranças são oito, enquanto que, em Lucas, são quatro somente e vem acompanhado dos correspondentes "Ai de vós". E mais, Mateus "espiritualiza" as bem-aventuranças; diz ele: "Bem-aventurados os pobres... em espírito; bem-aventurados os que têm fome e sede "de justiça". Em Lucas as bem-aventuranças são marcadamente "terrenas"; diz ele. "Bem-aventurados, vós os pobres, vós que tendes fome, vós que chorais", e denuncia como perigosas as situações opostas: "Ai de vós, os ricos, vós que agora estais fartos, vós que agora rides".

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Nada de "espiritual". Em Lucas tudo é muito concreto. Na versão de Lucas os destinatários são somente os discípulos. Com efeito, vejamos como começa o anúncio: "Havia um grande número de discípulos e uma grande multidão e erguendo os olhos para os seus discípulos, disse: "Bem aventurados vós, os meus discípulos, porque vosso é o Reino de Deus. Porque Jesus fala desse modo? Pedro, André e João e os outros, não eram ricos, mas também não eram miseráveis: tinha uma casa, uma barca; muita gente se encontrava em situação pior.

Por que só os discípulos são proclamados bem-aventurados? Que coisas extraordinárias os fizeram? Para entender o sentido desta bem-aventurança é preciso lembrar aquilo que Lucas narra no capítulo anterior. Antes de tudo, ele fala da pesca milagrosa e da vocação dos discípulos, e depois, como conclusão do episódio diz: "Eles, atracando as barcas à terra, deixaram tudo e o seguiram" Um pouco mais adiante, no mesmo capítulo, nos relata um outro chamado, o de Levi, e a conclusão e a mesma. "Ele, abandonando tudo, levantou-se e o seguiu" (Lc 5,28). Aí está a característica dos discípulos: eles tiveram a coragem de abandonar tudo para seguir o Mestre. Renunciaram à posse dos bens deste mundo, escolheram os pobres. São bem-aventurados porque entenderam que a vida do homem não depende dos bens que possuem.

Dom Moacyr José Vitti, CSS é arcebispo metropolitano