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O vestido, o esquecimento e a verdade

O vestido azul e preto que parece branco e dourado bombou nas redes sociais e quase todos os jornais publicaram matérias com psicólogos e neurocientistas explicando o fenômeno.

A princípio, pensei que fosse coisa nacional, uma distração do cotidiano que insiste em nos bombardear com más notícias. Fiquei surpreso ao saber que o vestido era inglês e o debate, internacional. Parece que todos queremos sempre mais uma coisa irrelevante para nos distrair.

Lembrei-me de Jean Lauand, professor da USP, que me ensinou que em árabe a palavra “homem” (insan) remete, etimologicamente, à ideia de “aquele que esquece”. O esquecimento seria o grande sinal da finitude humana, aquilo que nos contrapõe a Deus, “que nunca esquece”.

Quando temos ideias conflitantes, dificilmente a verdade estará em qualquer uma delas, mas sim numa outra, mais ampla e rica

Com a busca de distração, o esquecimento deixa de ser limite e se torna meta. Tudo bem, ninguém é de ferro, todos precisam se distrair e relaxar – isso é bom. Mas há algo de errado num mundo onde a distração e o esquecimento se tornam cada vez mais necessários.

Minhas lembranças viajaram do filósofo da USP para uma monja beneditina, mulher que passou décadas entre as paredes de um mosteiro, mas sempre me surpreendeu por sua capacidade de olhar o mundo fora de seu mosteiro.

Ela me ensinou que no mosteiro tudo está disposto para servir à memória de um “grande amor” (desculpem-me a expressão surrada). Trata-se da antítese de nosso comportamento: queremos distrair-nos para esquecer, o monge quer se lembrar sempre, nunca esquecer – para ser um com Deus.

Isso talvez explique a atração que os mosteiros, seja qual for a religião, continuam exercendo sobre nós. Um lugar onde não precisemos nos distrair, porque qualquer fato – do mais alegre ao mais triste – será sinal do amor.

Também me chamou a atenção uma interpretação do caso mostrando que tudo é impressão relativa. Em função de um processo interno do cérebro, uns veem o vestido azul e preto; outros, branco e dourado – e nenhum está rigorosamente errado. Mas não é bem isso que o caso mostra.

O vestido não tem cores diferentes em função do observador. Quem o vê normalmente constata que é azul e preto. Só em certas situações “engana” nossos sentidos. Esta é a verdade. Os que brigavam pela cor do vestido da foto estavam equivocados em qualquer dos casos, pois tomavam uma impressão subjetiva como dado objetivo.

Quando temos ideias conflitantes, dificilmente a verdade estará em qualquer uma delas, mas sim numa outra, mais ampla e rica, capaz de abraçar a ambas. Por isso o caminho da verdade implica em abraçar o diferente.

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