Quem segura sua mão esquerda com tanto carinho? Sente o soluçar do choro pelo movimento dos dedos. Seria ele? Espera que seja, precisa que seja. Ele está no quarto, também todos os filhos, mas as vozes se misturam, não consegue identificar. Ainda bem o desespero por não conseguir se mover, comunicar-se, desapareceu. Ou apenas se acostumou? Tampouco sente falta da visão. Há até uma estranha quase paz; o fim já não é próximo, isso é o fim.
Sente-se livre de repente, como um pássaro a voar não pelo espaço, mas pelo tempo. Avista o sítio da infância, ela pequetita com os dez irmãos correndo a brincar de tudo. Emocionada, enxerga o avô paterno construindo a capela em homenagem a Santo Antônio, onde tantas vezes rezou pedindo um bom marido. E foi atendida.
Imediatamente se vê na igreja, não sabia estava tão linda. Marcos Cláudio também estava elegante, e feliz. Sente muitas saudades dele. Escuta-se dizendo, de coração: “Eu, Marisa Letícia, recebo-te por meu esposo”. Chora. Foi a época mais feliz de sua vida, agora ela sabe. Dois meses depois estava grávida. Mas o destino lhe foi ingrato. O marido era motorista e foi assassinado num assalto seis meses depois do casamento. Teria ele sentido o mesmo que ela agora? Quando o filho nasceu, deu o nome do pai.
Instintivamente seu olhar é chamado para uma janela do prédio em frente. Atravessa o vidro e o vê. Estava sentado no que parece um tribunal
Voa novamente, mais adiante no tempo, já casada com Luiz Inácio. A década de 1970 passa em segundos diante dos seus olhos: seu casamento sete meses depois do início do namoro, os dois primeiros filhos, e eleição do marido para presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, a entrada na vida política por causa dele, sempre por causa dele, somente por causa dele. Chega a 1980 e lá está a primeira bandeira do PT costurada por ela com tanto carinho. O marido preso, ela à frente da Passeata das Mulheres. Sorri, eram tempos melhores, por incrível que pareça. Veio o terceiro filho, as sucessivas tentativas eleitorais do marido. Viveu para os filhos, a casa, o marido. Será que é ele a segurar tão carinhosamente sua mão neste instante? Espera que seja, precisa que seja.
De repente tudo se cala, sente-se chacoalhar, como se decolasse numa nave. Continua a se sentir como um pássaro. Qual seria? Uma pomba ou um corvo? Águia ou abutre? Pousa no alto de uma árvore de uma praça. Abaixo, capacetes brancos reluzem em formação militar. Onde está? O que é isso? Instintivamente seu olhar é chamado para uma janela do prédio em frente. Atravessa o vidro e o vê. Estava sentado no que parece um tribunal. Um microfone na mesa ao lado, um sujeito sentado à frente, posicionado mais alto, faz perguntas e ele responde. Está nervoso, ela o conhece bem. Não para quieto na cadeira, bebe água a cada dois segundos. O que ele faz ali? Então, escutou-o dizer:
“Foi minha mulher quem comprou”; “Então devem ter vendido o apartamento, tem que falar com a Dona Marisa”; “Não sei se o senhor tem mulher, mas nem sempre ela pergunta para a gente o que vai fazer”; “Gostava de um vinho, aquela ali”.
Um apito, algo é desligado. O médico fala: “Hora da morte: 18h57, de 3 de fevereiro de 2017”. Não sente mais a mão que segura a sua. No velório, o viúvo, comovido, discursou: “Marisa morreu triste porque a canalhice, a leviandade e a maldade que fizeram com ela... Quero provar que os facínoras que levantaram leviandades contra ela tenham um dia a humildade de pedir desculpas”.
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