Não choraria. As mãos apoiadas na bancada da pia, tensionadas. A presidente tinha o olhar perdido na água jorrando pela torneira aberta, lembrando do pai enchendo a banheira de casa. As mangas arregaçadas das camisas sóbrias, as veias saltadas nos braços, o suor no pescoço, cigarro pendente na boca. Não tinha dúvida de que o búlgaro de 1,95 metro, que fora filiado ao Partido Comunista, orgulharia-se de tudo que ela fizera. Morrera em 62, antes de ela começar sua formação marxista, mas tudo estava nela desde antes, por causa dele. O grande leitor, que nos dias de calor esquecia do mundo dentro da banheira, sentindo o vento fresco no rosto, vindo pelo janelão aberto, copo de uísque ao lado, incentivava os filhos a ler. Livros escolhidos a dedo.
“Sra. Presidenta, a votação vai começar”, alguém lhe chamava. “Um minuto”, a voz saiu frágil. Olhou-se no espelho. “Nada mudou”, pensou, desolada. É como quando estava na Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), em 65. O golpe militar ainda fresco e o grupo se dividindo entre os que queriam derrubar a ditadura reivindicando uma Assembleia Constituinte e os que pugnavam pela luta armada. Ela escolheu lutar, sempre escolheu lutar, por que agora capitular? As mãos crispadas, a indignação quase saltando pelas sobrancelhas furiosas; era tarde demais. Torneira fechada, um último olhar ao espelho com as luzes apagadas.
Ela escolheu lutar, sempre escolheu lutar, por que agora capitular?
Somente os dois, mais ninguém na sala. “Vai dar tudo certo, querida.” Ela confiava nele, sempre confiou, mas nunca o vira tão derrotado quanto agora. “A Kátia fez uma fala soberba, e ainda tem o Renan... Fique tranquila.” O grande timoneiro falava para ninguém. Ela mirava as paredes como quem não pertencia mais àquele lugar, tudo tornara-se estrangeiro, como o pai. Engoliu o choro. Na tevê, Renan cumpria o combinado, pedia misericórdia. Nunca se sentiu tão humilhada. Por que dera ouvidos a Lula? Como não dar? E seu advogado a convencera com tantos argumentos favoráveis, onde estão?
O resultado, enfim. Deu certo, fora poupada, perdera apenas o mandato. Nenhum deles se levantou, nem falou nada. Os asseclas não ousavam abrir a porta, nem sequer bater. Era possível escutar choros. “E agora?”, perguntou, mais para si. “Seguimos o combinado, o discurso está pronto. Seja firme.” Ele quem abriu a porta, desaparecendo com rapidez. Alguns abraços, palavras vazias, de conforto. Veio a maquiadora, fazendo desaparecer mais uma vez as olheiras. Estava pronta.
Lia o discurso, sem conseguir esconder o cansaço. “Sei que todos vamos lutar. Haverá contra eles a mais firme, incansável e enérgica oposição que um governo golpista pode sofrer.” O olhar cintilou de repulsa, fazendo-a sair do texto: “Repito, haverá contra eles...”, perdeu o fio do raciocínio, inexistente, puxou o ar, e continuou: “Haverá contra eles a mais determinada oposição que um governo golpista pode sofrer”.
Não conseguia dormir. Abriu o blog do Gerson Camarotti, não acreditando no que lia: “Segundo relatos, Dilma manifestou o seu desejo para a bancada do PT no Senado por intermédio do advogado e ex-ministro José Eduardo Cardozo. No primeiro momento, a bancada ficou dividida. A avaliação é que isso poderia representar um aval da própria Dilma para todo o processo de impeachment. (...) ‘Não foi uma boa solução, pois tira parte do nosso argumento de que houve um golpe. Isso legitima o processo’, argumentou um senador petista. ‘Mas, se a Dilma pediu, não tinha como a bancada ficar contra.’”
“Que filhos da p...”. Então, chorou.
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