Confissão não é autobiografia. Parece óbvio, mas só parece. Contar a própria história é uma coisa, outra é revelar suas faltas, erros, pecados. Claro que é possível utilizar do formato autobiográfico para fazer uma confissão, como fez Santo Agostinho, mas, nesse caso, jamais se pode perder de vista que são os pecados a conduzir a história, não o “eu”. É por isso que, em vários momentos, Agostinho se perguntou em sua obra: “onde estava eu, então?”
Creio que essa é uma das maiores dificuldades do leitor de hoje em dia para ler as Confissões. Estamos acostumados a autobiografias nas quais o “eu” do sujeito está no centro, no controle da história. Os pecados até aparecem, mas encaixados dentro da narrativa, não é como nas Confissões, nas quais o “eu” está o tempo todo se perguntando, procurando Deus, tentando entender, fazendo da sua narrativa uma procura por Ele, partindo dos pecados cometidos que o afastaram dEle.
Por isso muitos hoje se entediam rapidamente na leitura do livro, cansados de tantos apelos a Deus, louvores, orações. Querem a história de Agostinho, querem conhecê-lo, não conhecer Deus. Como Agostinho pouco se interessa por si, apenas enquanto procurando e encontrando Deus, o leitor de seu livro não tem alternativa: ou embarca nessa procura ou desiste da leitura.
Será que sabemos o que é pecado? Parece óbvio, mas, hoje em dia, será?
Quem persevera encontra ainda outro obstáculo. Se são os pecados que conduzem a narrativa, será que sabemos o que é pecado? De novo, parece óbvio, mas, hoje em dia, será? Ainda mais quando começamos a leitura e vemos Agostinho arrolando pecados de infância tão banais que, sinceramente, nem conseguimos considerar pecados, como, por exemplo, ele chorar por querer o peito da mãe.
O que é o pecado, então? Na primeira parte do livro, tratando da infância e juventude, antes da conversão, apesar das trocentas agulhadas da luxúria a que ele assentiu, é outro pecado que lhe chamou mais a atenção, um único e pequeno: o furto das peras. Foi esse ato que lhe revelou algo sobre a essência do pecado e do pecador. Agostinho enxergou ali a gratuidade do que fez, a falta de causa por faltar finalidade. Por que, para que furtar as peras, se ele não se deleitara com elas, tampouco no furto em si? Isso o levou a investigar o Mal, sua origem, sua causa, concluindo: “Indaguei o que era a iniquidade, e não achei substância, mas a perversão de uma vontade que se afasta da suprema substância, de ti, meu Deus – e se inclina para as coisas mais baixas, e que derrama suas entranhas, e se intumesce exteriormente”.
Trocando em miúdos, o que Agostinho tomava consciência é de que todos os pecados, no fim das contas, conduziam ao mesmo destino: o nada, o vazio, que experimentamos como tédio vital, num primeiro momento. Que tudo, absolutamente tudo que pode ser buscado pelo ser humano, se não for caminho para Deus ou buscado em nome dEle, é apenas “fumo e vento”, é nada, literalmente. Daí porque um dos sentidos originais da palavra pecado é “errar o alvo”. Daí também porque Agostinho, chegado aos 30 anos, sentia-se “preso ao mesmo lodaçal, ávido de gozar dos bens presentes, que me fugiam e me dissipavam”.
Era hora de curar sua vontade, de buscar a única coisa necessária, e assim ele decidiu: “Perca-se tudo! Deixemos essas coisas vãs e fúteis. Entreguemo-nos por completo à busca da verdade. A vida é miserável, e a hora da morte, incerta”. Era preciso, portanto, corrigir o alvo. Mas aí vem outro problema: onde está Deus, como encontrá-Lo? Nas Confissões, Agostinho nos mostra o caminho.