Cultura raiz, cultura Nutella

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Cultura, no seu sentido original como cultivo do espírito, da alma, foi substituída pela cultura com sentido apenas antropológico, ou seja, como sendo um conjunto, um sistema de crenças, valores, comportamentos, artefatos que caracterizam uma sociedade qualquer. É evidente que esta noção é válida, mas, num contexto em que desapareceu a noção original de cultura, a consequência concreta é a impossibilidade de se discernir entre o que é bom ou ruim; toda cultura e bem cultural sendo apenas diferente, nunca melhor ou pior para a alma.

Como, porém, a realidade continua sendo o que sempre foi, cultura é cultivo mesmo quando parece que nada cultivamos, o que significa dizer que, nesse contexto, acabamos por alçar a valor maior, senão único e absoluto, o respeito, a tolerância ao diferente. Eis, então, o sujeito contemporâneo que é obrigado a tudo tolerar e de tudo fazer para não parecer intolerante. Daí a sair caminhando e cantando e seguindo a canção Imagine em meio a uma guerra civil não há distância. É aquele para quem a legítima defesa é a de não se defender.

Cultura é cultivo mesmo quando parece que nada cultivamos

 

Tampouco é preciso dizer que se trata de personalidades muito frágeis, de papel, que se sentem ofendidas por coisas mínimas, assim como pedem desculpas não porque acham que fizeram algo de errado, mas porque alguém se ofendeu com o que disseram. Vide os recorrentes pedidos de desculpas, com profundo pesar, de celebridades por alguma bobagem dita. Coloque essas pessoas diante de algo que é inegavelmente intolerável e se divirta com o sofrimento delas em tentar se manter nesse mundo de faz de conta em que elas são pessoas tão sensatas. Por exemplo, o infanticídio em certas culturas indígenas. E aí, consegue aceitar, preferindo continuar sendo o sujeito bacana, tolerante, “da paz”, relativista, dizendo que é preciso respeitar a cultura alheia mesmo quando ela assassina crianças? Ou vai ousar ser intolerante, logo, uma pessoa “do mal”?

O mais engraçado com gente formatada nesse sistema de cultura é que, quando ela se depara com alguém que não se amarrou na mesma camisa de força do politicamente correto, não sabe como lidar, tornando-se exatamente aquilo que mais odeia: intolerante, transbordando ódio e acusando o outro de ser radical, louco, ignorante, perigoso e por aí vai. Ela é sempre a ofendida, nunca o ofensor. É sempre a oprimida, nunca a opressora.

Vejam o deputado Jean Wyllys. Processado por cuspir em outro deputado, defende-se dizendo que, se for condenado, será porque não toleram que ele seja gay, não por ter feito o que fez. Eis outra característica dessa intolerância dos tolerantes: o coitadismo, o “mimimi” como forma de chantagem psicológica. Ele pode cuspir, xingar, acusar do que for, mas, se isso não funciona, aí posa de sujeito perseguido, como se não tivesse feito nada. Essa cultura em que vivemos chegará ao fim da única forma que poderia terminar: neurastênica e intolerante com quem dela discorde.

É claro que, considerada como um sistema, toda cultura tem também sua contracultura. Ou seja, se de um lado temos tanta gente pura, limpinha, tolerante, paz e amor, politicamente correta, de outro vem a avalanche do politicamente incorreto. Mas, se num primeiro momento a zoeira serve como refresco de sanidade, não demorará a se tornar igualmente asfixiante se não recuperarmos o sentido da “cultura raiz”. Sem isso, tanto faz qual “cultura Nutella” você prefira.