“Suponha-se que, por fitas e imagens clandestinamente obtidas por alguém, fosse comprovado que um presidente ou um ministro de Estado recebiam suborno para auxiliar país estrangeiro a guerrear contra o Brasil ou que passavam segredos militares a espiões estrangeiros. Tais comportamentos são previstos na lei que define os crimes de responsabilidade dessas autoridades. Diria alguém que seria inadmissível o uso de tais provas, por força do art. 5.º, inciso LV [da CF]? Diria alguém, em juízo perfeito, que elas deveriam ser mantidas nos respectivos cargos pela impossibilidade de uso das provas em questão? Por certo, qualquer pessoa, com ou sem formação jurídica, aquiesceria na válida possibilidade de usá-las para defenestrar o traidor. Seria intuitiva tal conclusão. [...] Em suma: o artigo em questão não existe e nunca existirá, em país civilizado algum, para oferecer salvo-conduto acobertador de comportamentos ilegais na condução de assuntos públicos por definição e não protegidos pelo direito à intimidade, cuja existência tornaria inválidas gravações clandestinas.”
As palavras acima são de Celso Antônio Bandeira de Mello, dos mais respeitados juristas do país, referência inescapável a quem trabalhe com Direito Administrativo. O trecho faz parte de um artigo seu de 1999, chamado “FHC e as Gravações Clandestinas”, publicado pela Folha de S.Paulo. Se ele considerava válidas gravações clandestinas para casos assim, que se dirá para o que vivemos atualmente, uma vez que as gravações interceptadas em celulares de uso do ex-presidente Lula foram feitas com autorização judicial.
Antes de consertar o país, comece por você. Do contrário, apenas trocaremos de roupa ideológica
Entretanto, dias atrás, em uma entrevista ao site Calle2, o renomado jurista, perguntado sobre isso, respondeu o oposto: “Grampo é algo que juridicamente não é tolerado – só existe para circunstâncias muito específicas e com autorização judicial. No caso, esses grampos foram uma violência contra autoridades públicas, contra a presidente da República e mesmo contra o ex-presidente. Ex-presidentes merecem sempre todo o respeito, não interessa quem seja”.
Não, não estou aqui a tratar de escutas telefônicas, sejam de FHC ou de Lula, sejam legais ou ilegais. Trato de quem não pode ser considerado um “idiota de aldeia”, de alguém que não faz parte da “legião de imbecis”, como chamou Umberto Eco aos opinadores nas redes sociais que de nada entendem e tudo falam. É tentador, eu sei, considerar que o pensamento do eminente professor apenas se modificou, “evoluiu”, que agora não aceita mais que uma ilegalidade possa ser válida, acreditando que até mesmo algo legal pode ser inválido.
Mas chega, né? A quem queremos continuar enganando? Há coerência. Tanto em 1999 quanto agora, o prestígio e conhecimento técnico ficaram a serviço de uma ideologia. E quem dera isso fosse exceção, mas não é.
Vivemos sob a égide de um Estado Ideológico de Direito. Temos pelo menos duas gerações formadas nele. Faça o teste consigo: quão automático não é pensar que, se faço essa crítica, é porque também eu estaria a serviço de ideologia, só que contrária? Não há lava-jato que conserte isso. Solução? Não sei, mas, antes de consertar o país, comece por você. Do contrário, apenas trocaremos de roupa ideológica, mais nada.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura