Quando cursei a faculdade de Direito, nos anos 90, toda eminência jurídica advogava pela atualização das leis mediante uso das chamadas cláusulas gerais ou abertas. A intenção era evitar que a legislação envelhecesse, permitindo aos juízes preencher o conteúdo das normas conforme as mudanças históricas e sociais e as características do caso concreto. Tudo muito lindo em teoria, como um ovo de serpente. Já viu um, amigo leitor? É bonito, costuma ter casca de brancura maior que a de outros ovos, chega a brilhar no escuro.
Somente agora estamos testemunhando o que havia dentro do ovo. Veja o que o STF tem feito ultimamente, com alguns de seus ministros se arrogando o papel de legisladores, não mais como exceção, mas como parte do seu dever de ofício, dando de ombros para o Congresso Nacional e a Constituição Federal. Favorecida pela desmoralização quase total dos congressistas, a postura parece boa e necessária. Mas é péssima. Exemplos disso não faltam. O mais recente, e absurdo, foi o julgado de um habeas corpus no qual a 1.ª Turma do STF inovou a legislação sobre aborto. Mais especificamente, o ministro Luís Roberto Barroso, a quem carinhosamente apelido de ministro da “solucionática” jurídica – lembrando de um personagem de Chico Anysio, Alberto Roberto, que dizia: “não me venha com a problemática, mas me traga a solucionática”.
A rigor, não se pode acreditar em mais nada do que o ministro Luiz Edson Fachin disse e venha a dizer
Em seu voto, o ministro, primeiro, expôs duas posições antagônicas sobre o status jurídico do embrião durante a fase inicial da gestação, colocando, de um lado, os que sustentam que existe vida desde a concepção e, de outro, os que dizem que “antes da formação do sistema nervoso central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em sentido pleno”. Em seguida, veio com uma afirmação espantosa: “Não há solução jurídica para esta controvérsia.”
Hein? Como “não há solução jurídica”? O artigo 2.º do Código Civil é explícito quando dispõe (destaque meu): “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” Se essa solução jurídica é boa ou ruim não vem ao caso, mas um ministro do STF dizer que ela inexiste é absolutamente inaceitável. Mais do que isso, é estarrecedor que um ministro do STF (perdoem a repetição de “ministro do STF”, mas é que é um ministro do STF!) simplesmente ignore texto explícito de lei e crie, sem qualquer constrangimento, um novo regramento legal baseado única e tão somente em sua posição religiosa ou filosófica – tanto faz qual seja.
Pior, outros dois lhe acompanharam nessa artimanha, sendo um deles, para decepção de nós, paranaenses, o ministro Luiz Edson Fachin. Justo ele, que na sua sabatina perante o Senado, quando da sua indicação, foi perguntado sobre o aborto, respondendo de modo claro e direto: “Do ponto de vista de princípios, a vida é valor supremo. (...) A vida começa do começo da própria existência, independentemente da formação do ser humano. A rigor, a concepção é o marco a partir do qual é preciso proteger a vida”. A rigor, não se pode acreditar em mais nada do que o ministro disse e venha a dizer.
Não é preciso esforço para se perceber que tais posturas são incompatíveis com a honra, dignidade e decoro das nobres funções de um ministro do STF. É nessas ocasiões que não temos como discordar de Francisco Quevedo, quando disse: “causam menos danos cem delinquentes do que um mau juiz”. A serpente saiu da casca.
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