Quando eu era menino lá na cidadezinha de Curitiba meus dias começavam sempre iguais. Acordava cedo, pulava da cama e ia buscar os jornais entregues na frente de casa. Sempre esta Gazeta do Povo e a Folha de São Paulo. Adorava ler tomando café da manhã. Começava, é claro, pelo caderno de esportes, depois ia para as colunas de opinião. Na verdade, mesmo na seção de esportes lia as opiniões antes de tudo.
Minha formação literária, se houve, foi feita pelos jornais, não pela escola. Ali cumpria tabela, só os jornais eu amava ler. E todos sabem que só se aprende quando se ama o que se aprende. Formação muito pobre, contudo e por óbvio, coisa que passarei a vida consertando, o que venho fazendo faz uns 20 anos, pelo menos. Ainda assim, foi uma formação melhor que a da escola, garanto.
Embora gostasse dos colunistas comentando as políticas miúdas do dia-a-dia, as importâncias aparentes do momento, o que eu amava mesmo era aqueles textos que escapavam do cotidiano e falavam, vá lá, da vida. Nunca me esqueci de uma coluna de Carlos Heitor Cony – meu colunista preferido durante muitos anos – escrita em 2003, quando eu já era homem feito, casado, e continuava lendo jornais no café da manhã – além dos colunistas e da parte de esportes eu lia também a de cultura, quando isso existia.
Minha formação literária, se houve, foi feita pelos jornais, não pela escola
A coluna tinha por título “O assombro das noites”, começando por falar de sua tia Zizinha rezando de madrugada e depois emendava em Otto Maria Carpeaux, com quem ele viajava o país dando palestras para diretórios de estudantes nos anos 1970. Adorava imaginar essas palestras, já que Carpeaux era gago e Cony falava mal. Mas o centro da coluna era sua lembrança de uma noite em Florianópolis, quando testemunhou Carpeaux ajoelhado na saleta anexa ao quarto do hotel, rezando, o que muito lhe espantou, pois achava que Carpeaux não tinha religião. Assim Cony terminava sua coluna: “Tia Zizinha... Carpeaux... Uma noite dessas, tomo coragem e fico de joelhos diante de meus espantos”.
Voltei a me recordar dessa coluna, de Cony, da minha infância, quando me sentei para escrever aqui na última edição impressa de segunda-feira da Gazeta do Povo. Sinto-me privilegiado por isso, ainda que num misto de tristeza e esperança. Sentirei imensas saudades do jornal em papel recebido em casa todos os dias. Ainda bem estou me acostumando à notificação do aplicativo com o texto do nosso editor dando conta do que vai na edição do dia e continuo a ler o jornal durante o café da manhã. Se mudou o meio, não mudará meu hábito.
Faz pouco mais de um mês completei um ano neste espaço. Lembro do dia em que recebi o convite, estava tomando um café na Boca Maldita com um grande amigo. Lembro de desligar o celular e lhe falar: “C..., aconteceu o sonho da infância”. Perdoem a confissão, mas é isso mesmo. E se escrevo, escrevo para aquele menino que um dia eu fui. Mais ninguém. Não há coluna que não escreva me imaginando lendo pela manhã de segunda. Se aquele menino sorri ou se espanta, sei que ficou bom – ao menos para mim.
Toda vocação nada mais é do que a descoberta da resposta à pergunta “o que você quer ser quando crescer?”. Nunca soube responder, ou achava que não sabia, embora parte dela estivesse próxima desde sempre, já cedinho, esperando no portão de casa. Eis um daqueles espantos que Cony desejaria ter coragem para ficar de joelhos. Pois eu fico, e agradeço.
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