Enfim, literatura. Agradeço ao Chico Marés, pois ao ter recomendado, em sua última coluna nesta Gazeta do Povo, a leitura de “Submissão”, de Michel Houllebecq, deu-me o ensejo para recomendá-lo também, mas por razões bem diversas. Segundo ele, o livro seria útil para entender o que se passa no mundo e, então, “teremos uma chance melhor de combatê-lo”. Combater quem? Jair Bolsonaro, que seria “O Trump brasileiro”, título da coluna.
Por que combater? Porque Bolsonaro seria uma “figura nefasta” e “é tão hipócrita, ofensivo, mentiroso e inconsistente quanto o americano – embora não tenha o mesmo carisma.” Se ambos são ou não tudo isso, não sei, não foram apresentadas razões, mas com tanta imoderação nas qualificações - sobrou até para o autor da obra, que seria “um misógino islamófobo” -, certeza mesmo é que o colunista se coloca no extremo oposto. É aí que a coluna ganha comicidade involuntária, pois é justamente reações assim da esquerda, toda ela, diante da perspectiva de vitória da direita, que levaram a França a se tornar islâmica no livro.
Desse deserto espiritual para o político não há diferença essencial. Esquerda, direita, que podem fazer para dar sentido à vida, salvo um simulacro?
Se isso parece “menos pior” é porque não se aprendeu muito com a leitura da obra, não. Embora o colunista perceba que o “mal-estar” social e político do Ocidente, retratado no livro, talvez tenha causa diversa da política, reconhecendo que a “elite política binária” está “completamente deslocada do mundo real”, sua postura de combate nada mais é do que fruto desse deslocamento, não escapando dessa mesma visão de mundo binária. O que a obra mostra, enfim, é a falência disso tudo. Esquerda e direita, ali, não são forças políticas contrárias, mas partes de um todo em frangalhos, decadente, moribundo. Tanto faz o nome que se dê a esse todo, pode ser Modernidade (incluindo a Pós-Modernidade), Iluminismo, Humanismo laico, tanto faz, é a ruína disso tudo que forma o pano de fundo do romance.
Por isso, para se entender a obra, é indispensável ir além desse binarismo político e da própria cultura que o criou, é preciso falar do Espírito, de cuja realidade o homem moderno foi pouco a pouco se afastando e tentando substituir, até chegar onde estamos e o livro retrata magistralmente, através do drama vivido pelo narrador-personagem, o intelectual apolítico François, símbolo de todos nós. No lugar do Espírito há um vazio imenso, preenchido pelo tédio, a indiferença, a apatia. François até desconfia que isso tenha causa espiritual, daí seu interesse pelo escritor Huysmans, em especial sua conversão ao catolicismo. François tenta seguir os mesmos passos, passando horas em uma capela diante de uma imagem de Nossa Senhora e, nada. Interna-se no mesmo mosteiro onde Huysmans esteve e, nada. Nada disso fazia sentido. Que restava, então, se a vida material estava ganha e isso não bastava? Que restava, então, se era incapaz de amar uma mulher? Sobrava o vazio reinante, sentindo-se cada vez mais só, com um desejo frouxo de desaparecer, sem sofrimento, sem nada.
Desse deserto espiritual para o político não há diferença essencial. Esquerda, direita, que podem fazer para dar sentido à vida, salvo um simulacro? O livro retrata também a validade vencida desses substitutos espirituais, daí porque o Islã, que tem substância espiritual própria, apareça no livro não como um conquistador, mas uma solução. Enfim, recomendo a leitura a quem não esteja submisso à ideologia, seja qual for. A quem estiver, ler ou não ler não fará grande diferença, tudo será entendido à luz dessa submissão mesmo, então, tanto faz.