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No começo da semana passada, na cidade de Doha, houve uma reunião entre países árabes e sul-americanos destinada a estreitar relações políticas e comerciais. Ocorre que entre os chefes de Estado estava o presidente do Sudão, contra quem há mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional fundado em acusação de genocídio contra a população não árabe da região de Darfur, no sul do país. Em evento preliminar os Estados de maioria árabe se manifestaram a favor de Al Bashir e repudiaram a decisão do Tribunal de instaurar processo penal, afirmando que ela é política porque deixa de fora muitos outros que cometeram atrocidades, especialmente Israel na faixa de Gaza.

A instalação do Tribunal Penal Internacional em 2002 foi saudada como início da era que acabaria com a impunidade dos altos dirigentes estatais acusados de cometer crimes contra populações inteiras. Imaginava-se que facínoras do quilate de Hitler, Stalin, Pol Pot, Idi Amin Dada e tiranos menos ensandecidos, mas igualmente perigosos, ao estilo Pinochet, não teriam o horizonte livre para voar caso fossem apeados vivos do poder. Falou-se que o Tribunal julgaria tiranos de países poderosos e de países fracos. Não seria repetição do Tribunal de Nuremberg que julgou a violência praticada pelos derrotados na guerra. Obviamente, a apologia idealista tinha característica néscia, uma inocência que resvalava na ignorância sobre a natureza humana. Não há paraísos artificiais, não há engenho político que domestique os lobos, transformando-os em labradores. O TPI, assim como as demais cortes internacionais, é um esforço de civilidade, não uma casa de mágicas.

A vida real se impôs muito cedo ao se constatar a baixa adesão ao tratado que instituiu o Tribunal. Na verdade, apenas três países de população árabe aderiram, quase toda a África e Ásia ficaram de fora; os Estados Unidos, a Rússia, idem. Assim, a decisão juridicamente bem fundamentada de expedir mandado internacional de prisão contra um chefe de Estado em pleno exercício do cargo, ficou solta no ar, sem base política que a sustente. Vê-se a assimetria entre o poder político em sua dinâmica e as considerações sobre moralidade.

Contudo, além dessa questão sobre a viabilidade do Tribunal Penal Internacional, há dois aspectos interessantes a destacar da cúpula árabe-sul-americana: o constrangimento do nosso presidente ao ver que o seu lugar na mesa do banquete era ao lado de Al Bashir e a verborragia de Hugo Chávez contra a decisão do Tribunal e a apaixonada defesa que fez do sudanês.

O presidente Lula, quando indagado sobre a refeição ao lado do tirano do Sudão se limitou a dizer que havia comido salada. Na verdade, o presidente saiu à francesa para evitar fotografias porque elas prejudicariam a nossa imagem de compromisso com a defesa dos direitos fundamentais das pessoas e com o funcionamento do Tribunal Penal Internacional que conta com uma juíza brasileira, Sylvia Steiner. Não dá para manter um pé em cada canoa, sem o risco de cair na água. Em algum momento é imperioso decidir de que lado ficaremos. Dessa vez foi possível sair de fininho, mas chegará a hora de uma decisão frontal, completa, entre tirania e democracia.

Quanto a Chávez, o burlesco presidente de um país que assinou o tratado do Tribunal Penal Internacional, a afirmação mais comedida foi a de que o Tribunal é resquício do imperialismo e, para arrematar, convidou Al Bashir a visitar a Venezuela. Para aqueles que ainda imaginam que Chavez é novo guia genial dos povos, sucessor de Mao Tsé-tung no panteão dos ditadores mitológicos, chegou a encruzilhada que obriga a escolher entre a trilha de mais uma aventura à República das Bananas e o caminho da democracia.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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