Velhinhos japoneses, magros, grisalhos, com andar meio curvado, portando faixas com textos bilíngues, apareceram nos televisores marchando pelas ruas para lembrar as bombas de Hiroshima e Nagasaki nos dias seis e nove de agosto de 1945, sessenta e quatro anos atrás. Jornais, revistas trazem fotos das ruínas, de cadáveres calcinados, crianças mudas telepáticas, meninas cegas inexatas. Da página ou imagem seguinte saem bombas atômicas e entram bombas éticas da política, demolindo a rés do chão o edifício das instituições brasileiras, cujas colunas se constituem puramente de confiança. Porém a ruína daquilo que nem bem foi construído é passível de conserto, reforma. Assim as nações se erguem, puxando-se pelos cabelos, num esforço sem nenhum ponto de apoio que não seja a si mesmas. O dano que sofremos com os olhos esbugalhados de Collor, teatralmente colérico, rebatendo o pedido de renúncia do presidente do Senado feito por Pedro Simon, é passageiro. Existimos e existiremos apesar da imoralidade e o tempo transformará em névoa momentos de dor moral aguda, a exemplo da morte de um senador a tiros disparados por colega no plenário do Senado em 1963.
A banalização do mal produzida por várias opções políticas totalitárias no século 20 não se eternizou. A maldade nas guerras intestinas na África vem e vai. O Khmer Rouge é um museu de ossos. Quando a vida continua, a memória dos mortos vai se apagando e até os parentes, depois de décadas, sentem emoção remota. Em agosto de cada ano, bilhões de pessoas ficam compungidas pelas imagens das cidades vitimadas, mas não as distinguem nitidamente de cenas ficcionais; a silhueta numa escadaria parece graffiti e não o decalque da sombra de pessoa que foi vaporizada instantaneamente.
A marcha pela recordação pouco alcança os mortos porque não é do passado que os velhinhos japoneses querem falar; as lembranças se destinam ao futuro, a um mal que dura para sempre, contrariando a máxima popular de que não há mal que sempre dure. Hiroshima e Nagasaki são divisores da história porque mostraram que temos o conhecimento e a tecnologia para matar todos os indivíduos, suprimindo completamente religião, paixões, cultura, medos, expectativas sobre o novo emprego do filho amanhã, o resultado do futebol no domingo. Ninguém para dizer que se orgulha mais das linhas que leu do que das que escreveu. Vazio, nada de pensamento, ação, relação.
Para as pessoas, viver premido pelo terror do apocalipse é um não viver; por isso, se vai adiante como se a possibilidade não existisse. O instinto de sobrevivência é individual; o programa biológico que nos move a permanecer vivos, incutindo medo da morte, não computa a situação de auto-extinção de toda a espécie; a rigor, nos faz céticos quanto a essa possibilidade. Por isso, em agosto, os velhinhos japoneses voltam a dizer: hei, a qualquer momento tudo pode acabar. A preservação da humanidade é esforço cultural, exigindo convencimento e adesão.
Nunca se deve esquecer que temos o poder de fazer do mundo um lugar onde não haja alguém para carregar lembranças. É esse poder absoluto, completo, de alguns sobre todos que não deve ser esquecido, lançado na conta de quimera, de catastrofismo.
Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.
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