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A Páscoa de 1977 ocorreu à sombra da crise econômica detonada pelo súbito encarecimento do petróleo em 73; a economia brasileira – óleo-dependente – marchava para o esgotamento das reservas de moeda forte e o desemprego causava inquietação social depois do auge do milagre em 70. O governo militar, na presidência do general Geisel, perdia apoio popular e as eleições para governador, senador e deputado federal em 78, pareciam de antemão ganhas pela oposição. Nos porões, a linha dura queria enfrentar essa ameaça "comunista" com mais violência que a já utilizada pela polícia política. As pessoas do povo pensavam em chocolate, os políticos, em chumbo, diante da crescente tensão interna nas Forças Armadas que culminou na exoneração do General Sylvio Frota em outubro.

Desde 1964 se estava no Mar Tenebroso, no qual navegar era preciso. O ano da quartelada que não houve, 1977, foi o Cabo das Tormentas da nossa história política. Vê-lo depois de vivê-lo dá uma sensação de alívio. Mas a travessia deixou marcas indeléveis que explicam algumas distorções graves da arquitetura do Estado brasileiro. Os senadores biônicos, a eleição indireta para governador, o bipartidarismo com sublegenda, a Lei Falcão restritiva da propaganda eleitoral, mandato presidencial de seis anos, ficaram na poeira tempo. Todavia, a ampliação das bancadas dos Estados menos populosos e desenvolvidos na Câmara dos Deputados e a criação de um teto para os estados do sudeste e sul, contaminou a Assembléia Constituinte e seu produto, a Constituição Federal de 1988.

Não é caso de cozer em fogo brando o desejo de vingança que só pode se consumar quando amarelar a camisa da vítima que se deseja vingar, tal qual o filme que inspirou o título do texto. Estão em xeque as instituições, não as pessoas que as engendraram. A distorção da representação da população na Câmara dos Deputados permanece sem que a ditadura e seus próceres estejam no poder. A conduta política se mantém na moldura do passado porque os interesses imediatos em jogo permanecem os mesmos, apesar da mudança dos atores no cenário.

Porém, diante da avalanche de notícias sobre imoralidades administrativas no Senado, casa de representação dos estados da federação, começa a ganhar vulto a dúvida sobre a razão da existência de duas câmaras legislativas, tendo em conta que a Câmara dos Deputados, na sua composição não representa unicamente o povo, mas também – desde abril de 77 – os estados. É importante ter em conta que as construções institucionais são feitas com pedras de opinião, de ideias, e estão susceptíveis continuamente a julgamento de legitimidade no qual se perquire sobre a oportunidade e conveniência de criá-las, modificá-las, extingui-las.

O processo legislativo dividido em duas câmaras é invenção inglesa para acomodar o povo ao lado da nobreza que alcançou, na adaptação norte-americana, a função de representar numa casa o povo e noutra os Estados federados, além de estabelecer mecanismo de freios e contrapesos internos no Poder Legislativo, para evitar que houvesse desequilíbrio nas relações com o Executivo e o Judiciário. No nosso caso, a Câmara dos Deputados praticamente cumpre a função de dupla representação; bastaria desenvolver meios para equilibrar o processo legislativo na forma unicameral e as coisas se resolveriam.

Talvez uma das lições seja a de que o desejo de permanecer no poder, móbil do fechamento do Congresso e uso do Ato Institucional 5 para mexer com os princípios que orientaram a nossa história republicana, produziu efeito deletério quase irreversível. Ter a grandeza de não sobrepor um projeto de poder, por essência efêmero, aos valores preciosos para a existência da república e da democracia, é sinal de amadurecimento político que pode nos distanciar daquele abril despedaçado.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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