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Arquipelágico por natureza

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O consolidado conhecimento histórico demonstra que a vida era breve, sórdida e bruta, mas os mitos da antiguidade áurea resistem. O passado é visto como um tempo em que as pessoas eram cooperativas, amistosas, generosas, comunitárias. Via de regra, quem acredita nesse mito sói reclamar dos outros, apontando egoísmo, descortesia, competição, individualismo. O dedo indicador sempre apontado para as pessoas circundantes, nunca para o próprio reclamante.

Houve regresso moral? Éramos maravilhosos e nos tornamos pérfidos? Pequenas doses de aulas de História são suficientes para derrubar a crença na belle époque. A dubiedade moral acompanha a humanidade desde sempre e para sempre. Pelo mesmo motivo não há progresso moral. Há milênios rezamos, falamos de ética e justiça, mas continuamos tão humanos quanto sempre fomos.

Em algumas ocasiões as circunstâncias, especialmente as ideológicas, levam a incremento ou decremento da sordidez. A imersão em utopias revolucionárias ou reacionárias tende a funcionar como escusa sobre a imoralidade dos meios violentos para alcançar os fins almejados. Então, em momentos de vida normal, ordinária, quando não existe a tensão de marchar rumo a destino glorioso, a mediocridade tépida abranda a fúria pelos fins e ocorre mais preocupação com os meios.

As máquinas, os remédios, os aparatos mecânicos, elétricos, eletrônicos, nos fizeram deuses porque propiciaram domínio sobre a natureza

Porém, mesmo que se reconheça a imutabilidade da condição humana, o que significa que não houve ou haverá tempo áureo, no qual as pessoas serão angelicais, há fato documentado: nos primórdios do Homo sapiens convivia-se em intensa agregação; hoje, vive-se – não em todos os lugares, é bom ressaltar – de modo individual, até isolado. Por que ocorreu essa mudança da vida em comunidade para a vida em sociedade?

Aristóteles dizia que a vida comunitária era imperiosa e que apenas as bestas e os deuses podiam viver sozinhos. Nessa afirmação está a chave para compreender a causa da diminuição da agregação e acentuação da vida individual, do individualismo. A sobrevivência forçava a convivência. A ciência e tecnologia facilitaram a sobrevivência tornando menos imperiosa a convivência próxima, contígua.

As máquinas, os remédios, os aparatos mecânicos, elétricos, eletrônicos, nos fizeram deuses porque propiciaram domínio sobre a natureza. Atualmente se pode viver isolado sem passar pelas agruras da brutalidade das bestas enfrentando as intempéries, fome, violências e perigos diuturnos.

A vida comunitária de antigamente decorria das fraquezas individuais. Suportava-se conviver juntinho, sem privacidade, em grupos que fofocavam e se imiscuiam em todos os aspectos da individualidade uns dos outros, para somar esforços ante as hostilidades ambientais e de outros humanos. Trocava-se o medo de enfrentar sozinho as adversidades pelo incômodo da proximidade excessiva.

O individualismo da modernidade não é queda moral; decorre da superação das dificuldades que forçavam as pessoas a se aproximar para sobreviver. Nas cidades grandes milhões vivem pertinho sem conviver. Funcionam como arquipélago, mantendo distância, mas não se afastando demais a ponto de sair do campo de visão.

Os projetos políticos que intentam restaurar a vida comunitária são antinaturais e não consideram a profunda alteração das circunstâncias de sobrevivência.

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