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Do jeito que estão as chuvas, o título pode ser en­­tendido como algo es­­crito para orientar o trânsito pela Visconde de Nácar com a Vicente Machado. Diga-se, ali foi que me convenci das qualidades do meu primeiro carro: enquanto os chevettes, corcéis, fuscas, ficavam parados no aguaceiro, o opalão branco, velho, frouxo de tanta ferrugem, seguiu adiante. Ele não era um barco, título mais ade­­quado ao galaxie e ao dodge dart, mas navegava tranquilo nas enchentes. Mas isso foi só um caquinho da memória e não é preciso colar os caquinhos do velho mundo pra começar a tomar jeito e achar o fio da meada.

O que eu pensava de verdade era nos cruzeiros oceânicos. Somos nação continental, telúrica. Muitos nunca verão o mar e, apesar disso, viverão felizes. Amir Klink, Robert Scheidt, os irmãos Grael, são exceção no rol dos heróis brasileiros, repleto de lendários que flutuam em quadriláteros gramados, não n’água. Ainda assim, todo final de ano os jornais, revistas, ficam inundados de ofertas de cruzeiros oceânicos em navios que parecem shopping centers com salões de festas, teatros, cinemas, lojas, cassino, academia e, para quem tiver al­­gum tempinho disponível, vista para o mar. Olhando as fotos dos na­­vios e dos ambientes suntuosos, divaguei para os barcos vikings e as caravelas embandeiradas com a cruz pátea.

O mar emagrecia, hoje, engorda. As viagens são banquetes pantagruélicos, verdadeiros confinamentos para comer muito mais que o necessário. É improvável que alguém volte de um cruzeiro moderno com o manuscrito dos Lusíadas. No máximo, volta-se com a pele luzidia, de tão esticada. Sem emoção forte, os passeios insossos têm algo de burocrático. Encanta imaginar cruzeiro em companhia do marujo Camões: mar bravio, naus rudimentares, ignorância sobre as rotas. Aven­­tura na forma mais insensata, fazendo explodir a genialidade que transforma em obra prima as agruras da solidão, medo açulado pelos mitos, saudade de casa, da musa de cabelos cor da luz. Navegar na imprecisão era preciso e viver também o era, em­­bora nem sempre fosse possível. Não só lágrimas; o mar sal­­gado é temperado com mágoas de Portugal.

Quem deu ouvidos, percebeu que não foram vãs façanhas, fingimento ou mentira; o arrojo, a bravura, desfez a sombra escura que cobria o mar oceano. Ulisses, na sua odisseia, navegou no mar pequeno. O mar que banha Finisterra era beira do fim do mundo. Ulisses se perdeu tentando voltar para casa; Camões se perdeu no mundo; sabia o caminho de casa; a bússola emocional, hipermagnetizada, apontava para todos os ventos que levam e trazem quem se entrega aos seus sibilos como se estivesse nos braços de Cibele.

Colombo fez a mais famosa das viagens desbravadoras; perdido, achou um continente. Tem­­pos épicos quando do acaso brotavam novos mundos e os corações palpitavam com as notícias conhecidas meses de­­pois dos acontecimentos. Emo­­ções a Fernão de Magalhães estão extintas. As cartas náuticas, com apontamentos da estrela Polar, do Cruzeiro do Sul, das calmarias e correntes, esquecidas nos antiquários, permitem viajar pelas paixões desses homens dúbios, temerosos e corajosos, que encolheram o mundo e propiciaram turismo da terceira idade nas águas que agora unem, já não mais separam. Porém para que o mar fosse domado, mães choraram, filhos rezaram, noivas restaram. O mar português, para Pessoa, com as funduras e perigos é o espelho do céu.

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