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Os 20 anos da Constituição Federal trazem à memória a imagem de Ulysses Guimarães brandindo um exemplar do texto. Com a nova Constituição tinha-se a sensação de viver um divisor na história, algo para ser referido como a.C. e d.C. É certo, o sentimento podia ser atribuído à ingenuidade estrênua da militância política juvenil. Mas não era uma impressão só dos moços; os seniores, jovens em outras Constituintes, também vibravam de alegria.

Logo no ano seguinte o Doutor Ulysses, candidato a presidente da República, obteve poucos votos. Aquela pessoa monumento estava na campanha errada, na hora errada. Collor eleito, janisticamente governou e renunciou, não sem antes ouvir Ulysses dizer que, diferentemente de Collor, comprava seus remédios na farmácia. Em outubro de 92, Ulysses desapareceu no mar. A narração de Homero tornou lendário o guerreiro Ulisses, que inventou o cavalo de madeira presenteado aos troianos, de cujo ventre saltaram soldados gregos, selando a derrota de Tróia. A ida ao Colégio Eleitoral em 1985 também foi um combate intramuros. Vitoriosos, ambos se perderam no mar. Difícil não poetizar a similaridade e imaginar que temos um herói sem a poesia para imortalizá-lo.

Ulysses, o Guimarães, que enfrentou os cães da ditadura em 1978, capitaneou a campanha das Diretas Já, presidiu a Assembléia Nacional Constituinte, tinha determinação ética e coerência ideológica imunes ao tempo, mas a Constituição não retrata o seu capitão. A sua delicada trama ética, tal qual as tecituras de Penélope, é esgarçada por agudas contradições políticas que fazem o processo constituinte se alongar em infinitas emendas. "Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora. Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados", disse Ulysses, ciente das incoerências e fragilidades da avença política que decidiu não fazer as escolhas difíceis para a definição das relações entre o público e o privado.

A opção pelo texto extenso, aparentemente apto a vedar as frestas para a ressurreição das práticas políticas antigas e a rotina dos golpes de estado, aprisionou os pósteros. Embora, às vezes, o futuro repita o passado, o tempo não pára e o processo político acontece hoje, não ontem. O resultado disso é que todas as candidaturas à Presidência da República lançadas pós 1988 programaram emendas à Constituição. Os candidatos não foram apóstatas desejando afastar as venturas trazidas aos mortais pela Assembléia Constituinte. Eles apresentaram propostas para o tempo dos seus eleitores que não é o mesmo de 1988.

O "emendismo" tem causa arquitetônica e, como todo mal estrutural, é quase imperceptível. Para governar sincronicamente os políticos vêem-se diante do imperativo de mudar o texto constitucional e, para isso, precisam de maioria qualificada. Para conquistar essa gigante base de apoio, anômala em qualquer democracia, o instinto de sobrevivência política embaça as luzes morais. O caráter analítico do texto, com a sua rigidez nanquim-celulóica, enseja o nivelamento da ação política por baixo, todos os dias, todos os minutos.

A Constituição alberga preceitos magnos ao lado de minúcias, provocando discussões sobre a constitucionalidade em lides de escassa relevância social. Ao magnificar o que é pequeno, o embate político ocorrido na Assembléia Constituinte transformou o vértice da pirâmide num platô. A representação da verticalidade jurídica deve ser feita, no Brasil, por um trapézio, não um triângulo. Só uma bússola constitucional simples, acessível à leitura do povo, levará a nossa odisséia a portos serenos, ainda que Ulysses nunca mais retorne.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor da UTP.

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