Os cifrões bilionários de Avatar retratam a carência de fantasia, mitos. Em círculo, à luz oscilo-dançante da fogueira, as mentes poderosas dos primeiros hominídeos falantes desenvolveram a capacidade de construir mundos inexistentes para diversão, explicação não científica da realidade, dominação social pela infusão de temor reverencial. Pulam-se um milhão de anos: a luz do projetor cruza o escuro do cinema e explode na tela; não há gente acocorada em torno do fogo, nem interlocução; a narrativa é audiovisual, uma espécie de imaginação prêt-à-porter, e não exige que a cabeça crie as cenas, bastando se entregar silenciosamente ao prazer da irrealidade e da pipoca.
Dragões alados, coloridos, que servem como pegasus para voo dos antropoides azuis com sardas cintilantes, vegetação luminescente, conectores sinápticos entre os entes vivos, encantam os sentidos, preenchendo os vãos antes ocupados pelo Visconde de Sabugosa, Batman, Loira do Banheiro, Lobisomem. Somos consumidores insaciáveis de ficção, de imagens e sons descompromissados com a realidade. Descanso da concentração intensa que a sobrevivência exige, as narrativas fantásticas são drogas sem vício e efeitos colaterais.
Todavia, os malabarismos em voo, as montanhas flutuantes, seriam meras imagens non sense sem o fio condutor de algum significado ético. A imaginação é parte da realidade e dela não se descola totalmente. As improbabilidades lógicas do saci-pererê, do boto cor-de-rosa, do Capitão Kirk, são admitidas pela inteligência quando conectadas a alguma coisa que se pareça com a "moral da história". O filme Avatar não foge desse figurino imperioso e tem historinha singela de conflito entre egoísmo e altruísmo, desenvolvimento econômico e conservação ambiental, vida tecnológica e vida natural. Enredo politicamente correto a seu tempo, a cavalaria salva os índios que estavam sendo dizimados pelos colonizadores. Os fracos vencem os fortes com o auxílio consciente dos animais que fazem o papel da 5.ª Cavalaria dos filmes de cowboy. Ao fim e ao cabo, o minério permanece no solo, a floresta em pé e os silvícolas azuis continuam tomando banho em cachoeiras e dormindo em árvores.
A tese central da história é a de que todos os entes vivos do reino vegetal e animal formam um sistema vivo que tem consciência de si mesmo. É a Hipótese Gaia apresentada por James Lovelock, acrescida do exagero poético do planeta e os viventes se comunicarem por sinapses. A ideia de Lovelock é atraente, porém há fraturas lógicas. Obviamente, pensar na Terra como grande mãe que cuida do equilíbrio entre os seus filhos é uma experiência quase religiosa, mas pouco científica. O discurso da harmonia holística desanda em misticismo, postura adversária da inteligência.
As necessidades individuais postas lado a lado competem por recursos finitos e não alcançam a homeostasia imaginada pelo pensamento liberal transplantado do sistema econômico para o ambiental. Por outro lado, não há cooperação amorosa entre os vegetais e os animais para o bem comum. A capivara não quer ser devorada pela onça para que a natureza cumpra seus ciclos. O sucesso de uma espécie pode ser a sentença de extinção de outras e, quiçá, da própria que foi bem-sucedida. O planeta não é mãe, é madrasta; não é Gaia, é Medeia, na feliz antítese de Peter Ward.
A moral da história contada na fábula Avatar é chã como a mais comum das historinhas para nanar criancinhas e se a adotássemos maciçamente, em um ano voltaríamos à Idade da Pedra, lutando uns contra os outros por nacos de caça. A moral dessa análise não azul? Ainda que a tecnologia produza jornadas épicas pelo Universo, as dúvidas sobre o que é bem e o que é mal, as escolhas de um ou outro rumo, o ajuste da dose de egoísmo e altruísmo, estarão sempre presentes e nunca haverá respostas perfeitas.