As cerimônias públicas na Coreia do Norte (bastião do socialismo real) parecem coreografia de desenho animado, nos quais os bonequinhos sentam, aplaudem, sorriem sincronicamente. Fica-se com a impressão de que não são pessoas reais, de carne e osso, mas autômatos, programados para a atividade lúdica de um menino que se diverte com a encenação. A coisa é tão surreal que fica difícil de acreditar que as imagens no televisor são de um lugar que existe; assim como há uma comunidade no Orkut dos que acreditam que o Acre não existe, dá vontade de criar a daqueles que duvidam da existência da Coreia do Norte e atribuem as cenas a alguma conspiração da CIA para infundir medo no mundo. A existência verídica de uma situação tão patética pode ser motivo para chistes, mas infelizmente as piadas sempre terão o ar trágico do perigo da puerilidade de quem detém o poder da destruição atômica, capaz de afetar as relações internacionais e a tranquilidade de povos que vivem muito longe da península coreana.
Depois do fim da guerra fria, que dividiu o mundo por 50 anos entre a área de influência norte-americana e russa, viveu-se a sensação de que uma guerra nuclear era assunto do passado e o futuro promissor para a humanidade estava logo ali, na linha do horizonte. Essa nova ordem mundial foi uma miragem, uma bonança antes da tempestade. O afrouxamento da vigilância entre os dois blocos de poder abriu espaço para que vários países menores desenvolvessem tecnologia para a produção do concentrado de plutônio que é a base da bomba. Ao mesmo tempo, aperfeiçoaram foguetes que voam milhares de quilômetros e são capazes de acertar alvos longínquos.
O desconforto dos japoneses, dos sul-coreanos é mais intenso por causa da vizinhança, mas não estamos livres da ameaça. Talvez a Coreia do Norte, com suas bombas atômicas e mísseis, não seja motivo para testas enrugadas de preocupação aqui, na parte irrelevante do mundo; afinal, por que gastar munição boa com adversário ruim? Angustiante é a aceleração do acesso às armas nucleares: Paquistão, Índia, Israel, Coreia do Norte, Irã, além dos sócios remidos do clube Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França, formam um grupo muito heterogêneo de detentores do poder de extermínio. E, nesse passo, qualquer tiranete de camisa e quepe pode decidir que ter arsenal atômico é fundamental para consolidar a revolução.
Assenhorear-se de armas com tal potencial destrutivo não é assunto afeto apenas à soberania de quem decide forrar o seu paiol de pólvora com umas novidades tecnológicas; os danos produzidos em guerra e os gravames ambientais que perduram por gerações, são tema de interesse geral e todos têm legitimidade para discutir, questionar e se posicionar sobre o incremento da lesividade bélica. A mobilização política popular parece pouco eficiente para frenar esses arroubos de agressividade, porém a intervenção direta, guerreira, para dissuadir a construção das armas é opção extremamente delicada. Fazer passeatas, queimar bandeiras, pode dar espaço nos noticiários, mas dificilmente muda o projeto de um ditador. Apenas as democracias são sensíveis às pressões oriundas das ruas.
O peso político do Brasil na América do Sul impõe o dever de pugnar pela manutenção da área livre de armas nucleares. Esse dever não se cumpre apenas manifestando boas intenções, tapinhas nas costas, prosas afáveis em reuniões diplomáticas. É imperioso, por vezes, exercitar a musculatura política para preservar os seus nacionais e, ao mesmo tempo, atender ao interesse de todas as pessoas que vivem na região, contribuindo para que o mundo fique menos inseguro. Por isso é importante que o governo brasileiro se posicione com firmeza contra a proliferação de armamento nuclear e, particularmente na sua zona de influência, iniba aventuras perigosas.
Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.