A música de Jorge Drexler, tema do filme Diários de Motocicleta, traduz o otimismo melancólico das faces anunciadoras do acordo entre os Estados Unidos e o Irã, articulado por Alemanha, França, Rússia e Reino Unido. Os epítetos recíprocos dão a dimensão da dificuldade: Estado-canalha para o Irã; satã para os Estados Unidos. Como diz o cantautor uruguayo, todo se transforma.
Obama entra para o panteão dos mitos ao investir na superação das rugas com Cuba e a república dos aiatolás. Drones matando no varejo e grandes acordos de paz no atacado. Contradições dos titãs que indignam os mortais, mas fazem a história. Creio, as fragilidades éticas das sentenças de morte sem o devido processo legal executadas pelos robôs voadores remanescerão como assunto acadêmico.
Cuba será invadida pelos americanos – não via Baía dos Porcos, mas pelos navios de cruzeiro que despejarão milhares de turistas para lazer na ilha-museu. Até o mar circundante parece estacionado nos anos 50. Túnel do tempo que atrairá multidões. As filigranas da política castrista são irrelevantes para as pessoas que desejam passear, fotografar-se, beber e, a preço módico, fruir a sensação de paraíso tropical, fugindo do cinza das latitudes altas.
Cuba será invadida pelos americanos – não via Baía dos Porcos, mas pelos navios de cruzeiro
O efeito dessas novidades na modorrenta rotina cubana será marginal. A gerontocracia vai se reciclar, não cair. A abertura será lenta e gradual, quase ao estilo Geisel. Quem representará os papeis de João Figueiredo, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves?
O Irã não verá grupos de gringos, de elevada diversidade fenotípica, fotografando, bebendo, gastando dinheiro. As restrições religiosas tornam a terra de Xerxes pouco atrativa ao ocidental comum. No nível interestatal, não se crê em degelo acelerado, com inauguração de embaixadas, grandes corpos diplomáticos e afins. Obama asseverou que se trata de acordo baseado na contínua fiscalização do cumprimento das regras pactuadas, não na confiança entre os pactuantes. O sentimento de confiança demora a germinar, exigindo o adubo da reiteração de condutas adequadas.
Em Cuba, a resistência a acelerar a aproximação com os Estados Unidos está no governo e a vontade social é irrelevante para a elite dominante. No Irã, o governo é mosaico de política e religião, com rebanhos de fundamentalistas que veem o contato satânico como algo pecaminoso. Haverá confrontos internos, de resultado imprognosticável, que determinarão se o programa nuclear vai caminhar às bombas ou às usinas de eletricidade.
No contexto global, o acordo com Cuba é notinha de rodapé, da dimensão da ilha no mundo. A avença com o Irã, ao contrário, altera fundamente a situação de Israel e da Arábia Saudita – que, não por acaso, se opõem em jogral e descrevem a imediação do apocalipse. Netanyahu, o mais falante dos opositores, diz que os iranianos pavimentaram o caminho para dominar arsenal atômico e vão hegemonizar o Oriente Médio, ameaçando a existência do país hebraico.
O Rubicão foi cruzado. Agora é esperar bovinamente já que nós, punks da periferia, nada pesamos no cenário mundial, apesar de o Obama ter dito que o nosso ex-presidente era “o cara”.
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