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No verão de 1984 a chuva do final de tarde em Curitiba parecia tão regular quanto a famosa chuva em Belém (Pará, não Palestina); combinavam-se os encontros para antes ou depois da chuva. No dia 12 de janeiro, uma quinta-feira, aconteceu o comício de lançamento da campanha pela aprovação da emenda constitucional que eliminaria o colégio eleitoral e tornaria direta a eleição para presidente da República. O palanque ficou de costas para a Praça Osório e o povo se reuniu na calçada da Rua das Flores, aglomerando-se até a esquina com a Ébano Pereira. Não era um mar de gente, mas o suficiente para mostrar que a ideia não ficaria apenas na cabeça dos políticos que desejavam encerrar o período ditatorial iniciado em 1964.

A narrativa e análise histórica exigem cientificidade inadequada para o propósito singelo de uma crônica na qual a memória, com o inevitável trânsito entre a poesia e a prosa, é quem manda. Muita gente teve participação na construção da campanha, mas houve uma conversa entre o presidente e o secretário-geral do PMDB (deputado Ulysses Guimarães e senador Affonso Camargo) que consolidou as ideias esparsas e deu ignição ao processo. Ter presenciado essa interlocução em meados de setembro de 1983 e olhar retrospectivamente para os acontecimentos dá uma sensação agradável de que o tempo foi consumido de modo positivo.

Hoje os comícios são rotineiros a ponto de os tacharmos de maçantes e poucas pessoas comparecem espontaneamente. O cotidiano na democracia é plano, sem sobressaltos e se torna modorrento, preguiçoso. Quando todos se sentem compelidos a fazer política todo o tempo, algo está errado. No início dos anos 80 havia tantas coisas erradas quanto há hoje, mas se destacava o cerceamento à plenitude do voto popular. Corrupção, desperdício de recursos públicos, apadrinhamentos, nepotismo, financiamento escuso das campanhas eleitorais, eram agruras incômodas com a mesma magnitude atual. Todavia, a má qualidade ética da política é menos amarga numa democracia que numa ditadura, basicamente porque a manifestação do inconformismo numa situação sói ser reprimida com violência e na outra, os inconformados podem chegar ao poder para se tornar alvo de outras inconformidades.

Lutar pelo direito de votar para todos os cargos públicos, especialmente o de chefe do Estado, era um projeto que mexia com o imaginário popular por causa da sensação de que as eleições servem para cobrar a responsabilidade dos políticos pelos atos ruins que praticam no exercício do poder. A Campanha das Diretas tocava nesse ponto sensível, chamando as pessoas à participação, dizendo a elas que o poder sobre as coisas públicas é de todos os brasileiros e que o voto para presidente da República simboliza a submissão do chefe do Estado à vontade do povo. Foi fácil fazer os comícios seguintes porque havia certeza de que as pessoas afluiriam em grande número.

Na fase preparatória do comício muita gente trabalhou; jovens, adultos, velhos, cumpriram muitas funções. A mais divertida das tarefas era convidar os artistas para o comício. A Fafá de Belém inaugurou a sua condição de cantora oficial da campanha; o Raul Cortez, a Dina Sfat, jogaram charme para a multidão e o locutor de futebol Osmar Santos fez o alegre cerimonial do comício, transformando-o numa festa que deu o tom ao resto da Campanha. Do ponto de vista organizacional foi tudo meio mambembe, mas a força da idéia superou todas as debilidades técnicas.

Edificar a parte estrutural da casa é fácil. O acabamento exige paciência, tempo e muitos recursos. Conquistar o poder de votar para todos os cargos públicos foi a parte simples da engenharia política. A fase difícil está em curso e os políticos são como os pedreiros nos quais se deposita confiança e se espera que façam com esmero as suas atribuições na obra. Até o ponto onde estamos a parte de acabamento está inferior à estrutural. O Brasil merece bem mais do que se tem feito por ele.

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