Água e esgoto tratados, serviços públicos universalizados em vários países no século 19, ainda não existem para a maioria dos brasileiros que, paradoxalmente, têm acesso à internet, serviço público do século 21. A projeção governamental, sempre otimista, aponta 2030 como data para que todos os brasileiros saiam da fossa, com mais de cem anos de atraso.
Por meio do telefone a pessoa navega nas redes sociais, espalha fatos e fotos de sua vida para o mundo, eventualmente usa essas facilidades para estudar, mas quando abre o portão de casa, se depara com o passado fluindo em valetas fétidas que deságuam nos córregos das cidades. Os "dois Brasis" continuam existindo como se não houvessem passado 60 anos desde que Jacques Lambert evidenciou a assimetria entre a Bélgica e a Índia que marca as cidades brasileiras.
O contraste entre o acesso à internet e a falta de asseio público revela a incompetência estatal, a ponto de capitais como Manaus e Recife terem índices semelhantes aos piores do planeta. Diga-se de passagem que a rede de coleta e tratamento de águas servidas de Manaus foi construída pelos ingleses no fim do ciclo da borracha. De lá para cá, nenhum metro acresceu-se. Serviço público oferecido em regime de competição (telefone, internet) está ruinzinho, mas existe para quase todos. Água e esgoto, serviços por natureza monopolistas, são acessíveis à minoria. O Estado existe para quê?
Crianças que vivem em áreas sem coleta de lixo, bebendo água suja, pisando em matéria fecal que escorre nas ruas, se expõem a moléstias que as inferiorizam nas condições mínimas para desenvolver seus talentos. O mesmo ponto de partida para todos inexiste sem serviços públicos básicos.
Potenciais Einsteins e César Lattes padecem de verminose e atrofiam no Brejo da Cruz. "São faxineiros, balançam nas construções, são bilheteiros, baleiros e garçons" na voz de Chico Buarque. Se a dengue, malária, amarelão, lombrigas não consumissem o sopro vital, essas pessoas poderiam chegar às universidades e aportar qualidades que agregariam valor à nação.
As pessoas não são iguais. Mas as condições elementares para que elas realizem suas possibilidades devem ser iguais. Segurança, no sentido de que não serão vítimas de violência de outras pessoas, saúde e educação formam o piso sobre o qual caminha o progresso humano. Se os filhos dos pobres tiverem esses três bens em qualidade semelhante à dos filhos dos ricos, a pobreza fica no passado.
A esquerda tem ideia fixa de controlar a economia, sonhando com o exorcismo do diabo do mercado. Empobrecer os ricos para que todos se igualem nas valas infectas é o resultado de políticas ao estilo Chávez. A direita peleja pela ausência de controle, como se o mercado fosse santo. No meio dessas visões estreitas, o fisiologismo campeia solto, fazendo a riqueza pública se converter em patrimônio privado, desnaturando o princípio republicano da igualdade ao formar aristocracias nos cartórios, Judiciário, Ministério Público, Legislativo, Executivo.
Elites compromissadas pactuariam um acordo elegendo o saneamento básico como prioridade nacional, acima de cor partidária. Quem sabe em 2014 haja milagre político!
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