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São Paulo, antiga terra da garoa, hoje terra das tempestades que fazem o céu desabar, não é apenas en­­chentes nesse verão; também ocorrem ali muitos eventos reunindo gente de todas as tribos. Chamou a atenção um encontro denominado Campus Party, uma espécie de retiro espiritual de pessoas fanáticas por computação. O nome desse encontro de tecnófilos é feio para os comuns falantes de português, porém o evento é interessante porque milhares de jovens passam dias acampados dentro de um barracão, se distraindo com jogos eletrônicos em redes de computadores, desenvolvendo programas computacionais, fazendo intercâmbio de tecnologia. Não se parece com camping de beira de praia cheio de bêbados desafinados, encaroçados pelas mordidas de mutucas. Para uns: sexo, cerveja e samba, para os do Woodstock cibernético, second life, java e chips.

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Reunir milhares de pessoas para que cada um fique diante da tela, com o olhar capturado pelas imagens, interagindo por meio das máquinas, parece es­­quisito, mas quando se olha com mais acuidade vai surgindo vida vibrante, alegria humana mais poderosa que a frigidez dos computadores. Os jovens que participam desse evento podem causar impressão estranha, como se estivessem fora do mundo, mas certamente serão os donos do amanhã. A paixão pelo conhecimento e o desenvolvimento da habilidade de criar estruturas lógicas para dar utilidade aos computadores diferencia esses moços e eles merecem muito respeito. Penso neles quando escrevo esse texto num computador portátil a centenas de quilômetros de Curitiba. Se fosse numa máquina de escrever, como aque­­las nas quais aprendi a datilografar, o tempo passaria mais devagar simplesmente porque a produção seria muito menor e a distância, invencível.

Na mesma semana da festa em São Paulo o guru da tecnofilia, Steve Jobs, lançou mais uma bugiganga portátil para o deleite de quem gosta e gasta. O público visado é mais amplo que a moçada reunida no barracão em São Paulo. Há muita gente apaixonada por tecnologia, mas que se situa no grupo dos meros consumidores, sem a capacidade de produzir conhecimento ou inovar utilidades. Na outra ponta, estão os refratários a essas novidades, ainda usando caneta tinteiro e relógio de bolso. Não há que dar razão a um ou outro agrupamento, mas depois da esferográfica, do relógio de pulso inventado por Santos Dumont, manter o uso das "novidades" do século 19 não é opção operacional, é teimosia divertida.

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Olhando os jovens sentados, em silêncio, com os dedos hirtos sobre os teclados, durante horas a fio, vem a sensação de que o mundo não está perdido. Na antiguidade, pessoas dessa natureza estariam em alguma aula peripatética no Liceu de Atenas. Produziram o que hoje chamamos de cultura ocidental e foram mais fortes que os mitos e as facas amoladas da fé cega. Certa­­mente os vizinhos do Liceu olhavam para as aulas ao ar livre sem imaginar que testemunhavam fato histórico.

Quando humanos e máquinas não mais se distinguirem, os registros do passado estarão pontilhados de nomes que hoje estão nas listas desses saraus de tecnologia. Por outro lado, a memória de um acampamento na Ilha do Mel traz muita alegria; pode não ser registrada pela historiografia como fato relevante da cultura de uma civilização, mas compõe o patrimônio emocional que nos torna humanamente irracionais.

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Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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